Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Não-coisas tantas para fazeres no durante

Arrolo para a Laura


Faz não-coisas tantas que não precises mais dos afazeres.
Abre as mãos ao sol quando aquece e alumia
o mar do entardecer que te afaga e confunde os pés
na areia excelsa dos desacompanhados
―o seu próprio rumor rendido
numa camada transparente que fervilha
em cócegas de sal pequeninas―
com o fluir do sangue ininterrupto
a avivar o tacto da língua no presente.

Faz não coisas à beira-mar em diminutivo que sabemos.
Perscruta na excitação branca da barra
as gargalhadas que explodem submergidas
e desvendam na mistura das águas
comboios-barcos dum antigamente
mágico. E olha como desenham
num fumo de vapor esfarrapado
a fragilidade do instante que a custo,
a lágrimas, se segura pretérito. Escuta,
o ouvido sobre a via morta
num faz-de-conta de far-west do filme
a preto e branco da infância,
a sirene oceânica em vagas que vêm e vão
e vão e vem e vão e vão até encerrarem
o eco rectângulo do teatro em sagrado.

Faz não-coisas no esplendor da memória persistente.
Estende o corpo mudo à fecundidade da luz
e deixa-a cultivar na pele, um por um,
o porvir de cada vez que te pertence,
o anelo do imprevisível e a carícia dum olhar
adormecido no colo, febril e entregue
às notas graves da voz ainda
dele a ressoar pelas ondas em tropel
que manam para afadigarem a ausência.