Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Escuridão

Resgatei do lixo
um boneco de trapo
para nos abraçarmos quando
se apagarem as luzes.
As luzes todas.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Diagnóstico pouco romântico

Estas dores, diz o medico com gesto grave,
são a maneira que
o corpo tem
de exprimir uma ausência.

Mas...
olha, querido,
que não me parece que sejam
lugar escolhido para morada
do desamor
as canelas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Ao día seguinte

Ao meu lado
contemplei os restos do vendaval:
uma barra de labios rota,
dúas cartas do banco sen abrir,
un lapis de punta roma,
o móbil apagado,
a carteira aberta,
unha dor de cabeza en propiedade
insufrible
e unha pedra no estómago.

Fóra, un can que me ladraba.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Apesar

Chá como as tuas
palavras é áspero,
cáustico sempre
inevitavelmente, acho,
e, todavia, bebo-o
como se fosse
maracujá mascarado
de distâncias
medidas.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Febreiro

Como se febreiro fose o peso dun século
apenas levanto xa os pés no pouco que camiño,
mastigo lento e bebo a grolos
este inverno que parece o derradeiro.
E quen sabe?
Talvez sexa.
Parecer, xa dixen, parece mesmo.
Xa non espero que chegue a primavera,
non vaia ser que nin repare en min,
tan despistada sempre
ela.

Como se febreiro fose o peso frío dunha campa,
que nin alento me presta.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Exânime

O meu corpo é
um roupão molhado,
encharcado,
pesado e lento,
pálido e frio,
a que nada,
nem a música das palavras
com que tentas aquece-lo,
eleva.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Como se viesse para ficar

O cansaço é uma visita inoportuna
a qualquer hora
com quem ninguém quer conversa
nem partilhar a cama ou a mesa da sala.
Sempre, quando chega, de olhos vazados,
parece que vem para ficar,
tanta pouca pressa manifesta
no desprezo às palavras e nos gestos,
carentes de despedidas.

No outro dia, de dia, entrou casa adentro,
acomodou-se-me no peito,
desacomodando-me,
e abriu a boca,
gulosa de sangue,
as gengivas descarnadas,
num sorriso cínico,
cítrico.

Logo à noite, uma noite,
instalou-se-me no ventre,
expulsando-me de mim,
coalho de sangue,
para me devorar placidamente
às escuras e em silêncio.

O cansaço é uma visita nada grata
que chega de dia ao corpo
com a bagagem dos olhos vazados,
das gengivas descarnadas,
da nenhuma pressa à noite,
como se viesse
para ficar até ao fim do sempre
da gente.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Na quinta do era

Era de tarde em Aveleda
e a tarde dera trégua à chuva


Tiraste da algibeira as chaves
e foste-me abrindo as portas ao fundo de ti,
ao que és,
ao que foras.
E eram as lâmpadas queimadas,
e eram as salas vazias,
livros abandonados,
móveis ausentes,
o teu quarto, intacto, tal como era,
as celas que já não eram
ou o aqui que era a adega,
e a capela, ali, que era onde,
as cortes,
o lenheiro,
as relíquias e relicários
do que houve e do que não havendo há
num rasto de nostalgias caladas,
religiosamente descritas:
aqui era, aqui era, aqui era...

No quintal ainda o plátano,
colossal e nu,
denunciava-te no que és:
soma de tanto era.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Num instante

Nunca me senti maior do que nesse instante,
contemplando-te desde a pequenez pasmada
do meu corpo.

Nunca ninguém me fizera grande assim,
enorme: bastou que me oferecesses um poema
que continha o universo.

Fui a imensidade durante um segundo imenso.

Depois veio a vertigem: pernas a tremer,
cabeça às voltas, olhar desmaiado...
Caí a terra.

Num instante.