Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

domingo, 31 de outubro de 2010

Matrecos

Vêm lá do fundo próximo a alastrar
a tua voz em dias de defuntos, matrecos
na memória, tenteia
contra si próprio a força
da infância: (quase) sempre vence.

Acrescento mais uma peça
ao incógnito, presente
no passado a compensar
ausências de futuro: perco-me
nele para completar-te-me.

Desenhas num sorriso
um tempo bom, a três,
um bom tempo, o golo
que nasce do ataque desconcertado.
A única vitória possível (ei-la!)

É em mim a espreitar
que os pulsos doem.
Faz-se a loucura de pairar
tanto sobre campo alheio.
Esta loucura amarga que me habita.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Das mãos a concha


Nada sustém a concha das mãos, fora a ilusão do
amparo do rosto do
ser
(verbo, substantivo?)
isolado,
inacabado,
part
ido.

A concha de pedra ficará no livro de pedra para a memória, imperecedoura, de pedra, a amparar o não-ser que é. Lembras?

sábado, 23 de outubro de 2010

Antes do poente

Achas que o apanhamos? O sol, digo.
Para aquecermos com ele as mãos
e fazermos faíscas com as pontas
dos anseios? Achas? Pudera!
Fosse uma balão de luz
e nós, as duas, a querer tê-lo!

Sobre cordas circulares

Ouço
e não preciso de ir ao fundo de mim
para me descobrir mil e uma lágrimas.
Talvez seja a música que ouço agora
até sentir as paredes estremecer
como tu ouviste quando eu nem era
a magia que nos une quando já não és.
É no ar que recupero o sentido
perdido, ilusoriamente circular,
das espiras que desenhaste em mim
sobre as frágeis cordas da memória.
Ouço!

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A minha voz

Declamar-te-ia, dizendo-te simples,
a começar pelos pés,
fossem ainda as minhas mãos a
tocar-te, como cordas o teu corpo,
como dedos em ti os meus dedos,
que tocam ar só agora, vazio,
sopros sem vento, melancolia.
Dizer-te-ia simples, declamando-te,
a começar pelos cabelos,
fossem ainda os lábios meus a
beijar-te como ânsias o teu peito,
como olhos em ti os meus olhos,
que vêem terra só agora, cova,
cores sem luzes, a nostalgia.

Calou tanto esta minha voz, deserta.
Já não tenho sotaque a embalar-te.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

No final da tarde (mais uma), outono

É a ironia, onde desliza a arma da nossa obscuridade.
Herberto Helder. “Poeta obscuro”. Os passos em volta

A praça arrefece comigo hoje:
aninho-me nos braços da cadeira
e envolvo-me no azul que me sobrou.
Mais sal do que sol mastigo: lábios.
Sinto rajadas brutais de calmaria
doce a agitarem-me os circuitos
da razão: talvez a mesma pomba,
o mesmo freguês. Apenas eu
sou outra que se dilui na nostalgia
dum gelado de morango. Sorrio ainda?
A praça explode comigo dentro.
Apanho os meus pedaços de gelo
e reinicio a caminhada à escuridão.

O homem segue os passos do cadáver
com um sorriso inútil. Neguei-me.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Poema-bolo recheado de cianeto

Comia as palavras sem qualquer
adubo, nem sal nem canela, cruas,
atendendo apenas ao valor alimentício
necessário ao desempenho funcional
dos órgãos.

Um dia ―era já noite morta―, descobri
no quarto mais luminoso da casa
a cozinha e a farinha, os ovos inteiros
―descascados―, a batedeira. Aprendi
a brincar com fogo brando
na panela.

Dei então em pesar as palavras
na balança das precisões instáveis
e em colocar ao lado de cada uma o preço
a pagar por devora-las, eu no interior
oferecida como creme de amêndoa
amarga.