Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

terça-feira, 26 de maio de 2009

J. P. Sartre ao direito

Os outros sempre têm trinta anos.
São eles só os lúcidos,
os da palavra certeira,
os que se defendem da crise,
os felizes, os iluminados, os elegidos,
os que conduzem bem,
os que pescam as melhores trutas,
os que dominam a ferramenta musical e mecânica,
e a matemática.
São eles unicamente, só, os outros,
que debatem em profundidade de política e economia,
que atingem cumes e sucessos,
que encontram na feira as pechinchas
e no hipermercado se desenrascam pelos corredores
manejando com desenvoltura o carrinho abarrotado,
os que mudam as cuecas a diário (faça ou não faça falta)
e navegam pela internet em banda muito larga.
Em geral, têm também casa com jardim,
ou apartamento dúplex com vistas ao infinito.
Mas isso é só os outros.

Os outros, enfim, que não nós outros:
os tristes, os perdidos,
os filósofos de papel reciclável...
em inglórias horas.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Para quê?

Das minhas muitas desistências últimas
há uma que desprocura razões,
quer-se dizer, interroga-se sem aguardar resposta
sobre benefícios e vantagens,
propósitos e emendas
de companhias e solidões várias.

À pergunta pensada com ânimo de não ofender
a mão estendida e a porta aberta
substitui-a o pretexto físico formulado,
que é cansaço de fora,
mas de dentro é fastio.

A retórica tem assim estas inutilidades.

sábado, 16 de maio de 2009

Cativério

A cidade que me abriga tem por nome
todas as letras do alfabeto
para lhe eu cantar soletrando a melodia
na ribeira sobre o fundo
dum bramido indiferente
à aragem macia
que me embala enquanto
estendo o corpo sobre a pedra
côncava e ávida do calor
que emana o meu alento
ao mussitar
o nome da cidade que me envolve.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Passos

Transito de pés descalços sobre as pedras frias
que vão construir memórias,
cavalgo as ruínas das ilusões
eludindo o cepticismo irónico
que me acena de sobrancelha arqueada
e sorriso a meio pau
acomodado.

E vou...
Vou indo ainda de asas despregadas
e mãos tíbias
ao encontro do que sei nada,
ávida,
ébria,
incandescente,
cega visionária!

Sei que é mentira o sonho, eu sei,
mas quando pouso um segundo límpido a língua
no vidro do desencanto,
estala em cócegas mínimas
o bafo
e os punhos abrem-se-me estrelados
e caminho mais um pedaço
sobre as pedras frias até vira-las
lembrança transitada.

E assim vou, vou...
Vou indo ainda.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Incessante

Tenho de deixar o café a deshoras,
definitivamente, digo,
porque é noite e acordo
intuindo o teu sorriso esculpido
e fantasmas que falam as palavras tuas.

Tenho de beber mais café a deshoras,
evidentemente, penso,
porque é noite e durmo
só vendo o perfil da tua ausência
e os espectros que calam quanto não me escreves.

terça-feira, 5 de maio de 2009

A consciência

Bem sei... mas
sem lhe querer tirar beleza à imagem e mesmo assim tirando-lha
inevitavelmente,
a espinha,
a que a mim me fere,
reside na boca do estômago e é de ferro, de ferro
enferrujado.

No que diz respeito à fatura, vou-a pagando em incómodos prazos
e na morte do pássaro
liberado.