Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Já parti os espelhos

Penso que talvez eu morri já:
só que não consegui habituar-me
a essa ausência dos gestos e rotinas.
É por isso que me visto cada dia,
faço a cama e sento à secretária
em que escrevo muito vagarosa
como se ainda estivesses a aguardar-me.

Penso que talvez eu morri já.
São sinais este po que tudo o cobre,
tantos livros empilhados pelo chão,
esse copo que está ali meio vazio,
cá este ramo de secas sempre-vivas,
o relato inacabado da memória,
um abraço em que não mais nos entranhamos.

Penso que talvez eu morri já:
por isso está uma pira à minha espera,
os músculos fraquejam e a vontade,
revigoram-se as dores e os silêncios,
instalou-se o passado nos armários
e pressinto que nos olhos tenho cinzas,
não que as veja, que já parti os espelhos.

Penso que talvez me matei já,
mas careço de forças para enterrar-me
no cinzento céu da trovoada.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Nem sempre é o mais cruel...

Ainda é abril e chove como cumpre:
escorre-me a água da cabeça aos pés:
hoje levo o rio no corpo:
dois casais de patos partem dos meus braços,
nos meus olhos pousam ao uníssono as asas.
No mesmo lugar de ontem ouço, escuto agora,
o canto novo dum pássaro
e a sua resposta: quero já só
saber o seu nome e daí as cores.
Sente-se também uma podadeira.
E os ventiladores do computador, claro.
Passa alguém no caminho e os cães
latem em multiplicados ecos... ecos.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Unha mazá

Ou talvez comer unha mazá
(que o ar recende á terra
mollada e á herba acabada
de cortar) e en canto trinque
cos dentes a casca e o acedo
zume me alague a lingua,
talvez, digo, talvez, nas veas
flúa a lembranza do que non foi.

domingo, 17 de abril de 2011

Tropeço na sombra

Tropeço na sombra que me segue
quando calço as botas gastas
que há tanto me acompanham.
Levo mancheias de ar nos bolsos
que roubei ao teu alento um dia
e pesam como borboletas mortas
sobre o canto matinal do melro.
Há tanto amieiro seco de raízes
na água e tombados, escachados
nas margens, sobre o trilho, e ainda
ramos que desabrocham mínimos
ao ténue lusco-fusco deste alvorecer
inverso em que os olhos mergulham.

Pudesse eu ser pétala desprendida
duma flor de cerejeira cor-de-rosa
aprendiz de ave a navegar os ventos
até beijar amorosa a terra, essa,
que as minhas botas gastas pisam,
a mesma terra, essa, que te contém
o corpo mas não te retém a sombra
que me segue, a sombra em que tropeço.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

A palavra calada

A cada poema teu respondo
com a emoção do alento
e o silêncio das noites
pois que não me ouves
                                           mais.

sábado, 9 de abril de 2011

Tão longe

Tenho saudades da viagem que não farei
ou talvez saudades do tempo em que
bastava fechar os olhos para andar
e o espaço tinha o tamanho dos sonhos
que nunca batiam contra o infinito.

Há um deserto que nunca irei percorrer
e já senti a areia a arder nos pés descalços;
há um pôr-do-sol laranja e uma árvore
ao contrário a desenhar-lhe veias pretas;
há um rio como o peito duma mãe
em que se bebe a esperança nascida.

Tenho memórias da viagem que não farei
ou talvez memórias do tempo em que
bastava abrir os braços para amar
e o mundo tinha a dimensão da vida
que nunca iria esbarrar em muro algum.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Almorzo

Unto sobre as torradas as guerras,
os conflitos, os desastres, as violencias
singulares e voraces de vidas coma nadas;
engulo a exposición das preferencias
da prensa sobre todas as contendas
e lavo logo a louza, enxaugo en música
o silencio e arrombo a alma co aceite
e o mel, seco as mans e as bágoas.

sexta-feira, 18 de março de 2011

O espanto das meninas

Porque a poesia está em toda a parte,
descobrem com espanto as meninas
(como quem nunca leu coisa
além, claro, do próprio umbigo)
enquanto folheio versos sublimes
que me inspirem frases despidas,
eu componho poemas na sanita
e a casa de banho, de janela aberta,
vira centro espiritual da biologia.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Este corpo, aquela ansiedade

No corpo descompensado
as pernas que ardem,
as mãos regeladas,
pés que caminham tudo para esquecer toda a dor
dedos que nada escrevem para nada mais esquecer
―no equívoco vingam os contrários.
Mordo a língua e cuspo-a na relva,
ela fita para mim em silêncio
e devolve-me num gesto as ausências
perdidas no baú das memórias
sem código de acesso, embrulhadas
em papel de seda e laços de fantasia.

O corpo acorda à música da aragem
e detêm-se os pés à sombra dos amieiros
florescidos para os dedos gritarem a dor
e compensa-se, no lusco-fusco, a resignação
da porcelana partida contra as paredes
da sala, os nacos de alma semeados
num canteiro, com o silêncio opaco
dum ventre adormecido, de desejo
quedo, de desídia móbil. Canta

um chapim na bigorna do ar
a ansiedade inteira e a sua resposta.
O corpo aguenta-se mais um dia.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Lágrimas e beleza

Chora-se de um só olho
quando se lê
porque o outro precisa
de absorver
a beleza do mundo.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

As horas marcadas

Quebro à medida que abre
o dia e a cada inspiração
a fenda faz-se mais funda
atrás de mim ―ou será à frente?
Há um roteiro que é preciso seguir
hora após hora, passo a passo,
ditado pelo instinto mais primitivo:
sobrevivência até a morte.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Sou eu a minha cela

Sou eu a minha cela e tenho
no lugar de pele grades,
vidraças coma aço
inoxidável no olhar e nas unhas,
na boca sou tudo silêncios mentidos
entre dentes que resguardam
de ternuras alheias a frieza
com que me não despeço,
de que me não dispo.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Hereafter

Tocavas-me na pele e sentia-te no cérebro.
Tocas-me no cérebro, sinto-te na pele.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Sons nocturnos

O desumidificador que esqueci desligar,
o ressonar da caldeira e os estalos dos radiadores,
o relógio da sala que dá todas as horas
(e as meias) e o pêndulo
que bate em cada segundo e se baralha
com as palpitações dos meus pulsos,
o galo cego e insone do vizinho,
um cão que late ao longe, outro
que lhe responde e mais um que uiva
ao vento do pinheiral o medo,
a minha memória de ti
e o crepitar da geada na relva,
as dores,
a Dor.

Aniversário duma ressurreição

Há um ano um dia como hoje, destas horas,
era manhã de domingo, anunciava-se sol
e as beatas percorriam,
as mãos a baterem no peito,
o caminho dos sinos e pediam
por mim nas suas orações,
pela minha culpa,
pela minha grandíssima culpa.

Há um ano um dia como hoje, destas horas,
ainda não era domingo de tarde nem estava sol,
não traçaras ainda sobre a toalha da mãe
o roteiro da cidade submersa
comigo dentro, nem as mãos despiam
os corações no peito e o desejo.

Há hoje um ano foi domingo dia inteiro
e enquanto o sol se punha no mar, terra dentro
bastou uma palavra tua para sanar-me,
uma carícia tua fez a minha ressurreição.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A poesia recomenda a viagem

Para aniversariar um preâmbulo

No início foi o poema e sobre
a sua fragilidade ergueu-se a fé
e mais o medo, a cumplicidade e
a destruição dos sonhos: a carne,
o vinho na mesa e os seus versos interruptos.

Foi no final o poema e a dissolução
consistente dum edifício etéreo
e mais a raiva, o desamparo e
a invenção da culpa: o prato,
o copo vazios e a sua viagem truncada.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Do tempo invivido

Morri mais um pedaço, de tarde,
e apenas já a noite crescida,
foi acordando o corpo,
com o sabor ainda das cinzas
na boca e as pálpebras graves,
os membros e o desejo entorpecidos.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Os días estériles

Ah, se eu fose un corpo claro
virías a min sen dúbidas
e escasas reticencias (algunhas),
mais son apenas esta cinza insubmisa
que treme a cada camiño que emprende,
un interrogante máis que atrae só pola incerteza
dun ollar triste que se debruza
para dentro de si
e do instante en que te perde.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

E ainda a música

Há morte a mais nesta decepção,
vida a menos em cada branco
opaco e no silêncio que envolve
o hálito destemperado da tarde.

Há uma lixa na língua que arde,
na secura da boca que emudece
as promessas mentidas sobre os lábios
dum beijo burdo e desumano.

Há o sangue ruim com que engalano
de podridão e lama e versos,
bílis e vómitos da pétrea fidelidade
a negação absoluta dum abraço.

Há na rádio a voz que come o espaço,
uma diminuição gradual da luz
no quarto e na mente que se invade
de sons tangíveis como só os sons são.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O teu nome de criança

Para a Rosa

Antes que suba o nível dos oceanos,
antes que a ilha em que naufragas naufrague,
antes que o sal torne saudades de pedra os sonhos,
volta ao continente onde nasceste,
onde a terra não acaba logo em precipícios insalváveis,
onde os pés se seguram e seguram a razão
alta e direita como se seguram os olhos num horizonte
de montanhas que excitam a imaginação e
a curiosidade da descoberta ou o sossego.

Volta a ti antes que o tempo esqueça
o teu nome de criança.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Todas as palavras dentro

A tarde faz-se espessa sem nada para dizer
e eu sei que tenho todas as palavras dentro
(dentro tenho as palavras todas, eu sei)
mas está fora o papel vazio e há ainda uma ânsia
que me esmaga sem piedade o desejo de ser
o que não consigo ―ser― e escrever é este suplício
de nada dizer mesmo tendo como num cofre
fechado o peito a guardar as palavras vivas.

A morar na névoa

Foi a névoa que me trouxe ontem
de regresso a casa, o caminho todo
lento e lento, pesado, a envolver
a noite em purpurina sob as luzes
brancas e vermelhas,
vermelhas e brancas,
dos faróis dos automóveis moventes.
O trânsito era raro e brando:
ninguém queria ser guia
que atravessasse a cortina opaca
até o asfalto ignoto, o amanhã.

Já é amanhã e a polpa da névoa
persiste a dosar
o impacto da visão no horizonte.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

E baixe o pano...

Sobre un proxecto frustrado que se funda?
E sobre esta penumbra que tolda os diálogos?
Sobre a urxencia sometida á presión dos entreactos?
Sobre o silencio oculto tras fonemas vacuos?
(U-lo apuntador que non responde
cando o chamo ao meu auxilio?)

Non hai papel que nutra
a caldeira rebentada do drama.
Escoan ácidos os excesos de impudor
e xa o público se nega ao desenlace.
De nada serve reclamar a devolución
dos cartos á farsa mal representada:
o fracaso permanece no sangue
e pinga.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

De mans feridas

Petéirame o tempo nas nocas
e sangro
lene
a agonía demorada.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Por um segundo apenas

Apeteceu-me sobre o (des)café,
entre o último poema e
as crianças que brincavam na praça,
escrever-te uma carta
com todas as palavras que se perderam.
Não encontrei nas mãos
os dedos suficientemente vivos.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A minha vez

Aparecesse Ela agora à porta,
sem o aviso prévio entregue,
e pronunciasse,
o dedo indicador na mão-revólver,
a sentença irrevogável:

―A seguir, vais tu!

fitá-la-ia, sem medos nem escusas,
e voltar-lhe-ia as costas para fazer as malas
de que não precisarei para essa viagem:
a travessia por que irei ao meu encontro,
o caminho para dentro de mim.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Terra!

Não preciso de inventar palavras
para reconhecer o universo
Apenas aspiro a criar o discurso 
que me devasse 
de dentro para fora
de baixo para cima
de lado a lado
como o que sou

A Descoberta

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Dos versos que voam

em 9 de Dezembro de 2010

Não há meios-paraísos
nem neve de que dias se façam:
inventam-se para isso versos
que como os passos também
dum tango à deux se dançam,
entrançados
no abandono os braços
que levam sem levar
num pacto de entrega
até ao fim da melodia.

Depois o verso é livre,
pássaro-tu.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Ante diem septimum Idus Decembris

E como fugir à transcendência
com que o dia se enfrenta,
esta ausência nítida de peso
e medida em segundos incontáveis?

Há em cada ano esse momento
em que torna a chover por volta
das três horas da tarde,
ninguém sabe bem para quê.


(Quiçá a lua resista esta intempérie
de deuses proscritos e vinho que se bebe
como sangue no dia equidistante
dum mês que perdeu o seu sentido.)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Advento

Pasarei polo nadal como
se non existise (eu?, deus?):
un día igual ao outro día,
igual ao que ha de vir
(e son todos tan distintos!)
lámpadas led na partilla equitativa
dos afectos envurullados em papel de cores
e fitas vermellas que me prenden os pés
a un abeto de plástico verde.

Pasará por min o nadal como
se non existise (deus?, eu?).
Talvez mañá neve no presebe estrelas,
un sinal da cruz e unha bóla de vidro
dourado escache á luz da candea
derradeira do advento. Nos anacos
que o chan retén cortarei os pés
reberetados de fitas vermellas,
sen un grito, sen remorsos.

Ninguén me procure submetida
á sonora agresión das panxoliñas.