Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Hereafter

Tocavas-me na pele e sentia-te no cérebro.
Tocas-me no cérebro, sinto-te na pele.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Sons nocturnos

O desumidificador que esqueci desligar,
o ressonar da caldeira e os estalos dos radiadores,
o relógio da sala que dá todas as horas
(e as meias) e o pêndulo
que bate em cada segundo e se baralha
com as palpitações dos meus pulsos,
o galo cego e insone do vizinho,
um cão que late ao longe, outro
que lhe responde e mais um que uiva
ao vento do pinheiral o medo,
a minha memória de ti
e o crepitar da geada na relva,
as dores,
a Dor.

Aniversário duma ressurreição

Há um ano um dia como hoje, destas horas,
era manhã de domingo, anunciava-se sol
e as beatas percorriam,
as mãos a baterem no peito,
o caminho dos sinos e pediam
por mim nas suas orações,
pela minha culpa,
pela minha grandíssima culpa.

Há um ano um dia como hoje, destas horas,
ainda não era domingo de tarde nem estava sol,
não traçaras ainda sobre a toalha da mãe
o roteiro da cidade submersa
comigo dentro, nem as mãos despiam
os corações no peito e o desejo.

Há hoje um ano foi domingo dia inteiro
e enquanto o sol se punha no mar, terra dentro
bastou uma palavra tua para sanar-me,
uma carícia tua fez a minha ressurreição.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A poesia recomenda a viagem

Para aniversariar um preâmbulo

No início foi o poema e sobre
a sua fragilidade ergueu-se a fé
e mais o medo, a cumplicidade e
a destruição dos sonhos: a carne,
o vinho na mesa e os seus versos interruptos.

Foi no final o poema e a dissolução
consistente dum edifício etéreo
e mais a raiva, o desamparo e
a invenção da culpa: o prato,
o copo vazios e a sua viagem truncada.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Do tempo invivido

Morri mais um pedaço, de tarde,
e apenas já a noite crescida,
foi acordando o corpo,
com o sabor ainda das cinzas
na boca e as pálpebras graves,
os membros e o desejo entorpecidos.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Os días estériles

Ah, se eu fose un corpo claro
virías a min sen dúbidas
e escasas reticencias (algunhas),
mais son apenas esta cinza insubmisa
que treme a cada camiño que emprende,
un interrogante máis que atrae só pola incerteza
dun ollar triste que se debruza
para dentro de si
e do instante en que te perde.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

E ainda a música

Há morte a mais nesta decepção,
vida a menos em cada branco
opaco e no silêncio que envolve
o hálito destemperado da tarde.

Há uma lixa na língua que arde,
na secura da boca que emudece
as promessas mentidas sobre os lábios
dum beijo burdo e desumano.

Há o sangue ruim com que engalano
de podridão e lama e versos,
bílis e vómitos da pétrea fidelidade
a negação absoluta dum abraço.

Há na rádio a voz que come o espaço,
uma diminuição gradual da luz
no quarto e na mente que se invade
de sons tangíveis como só os sons são.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O teu nome de criança

Para a Rosa

Antes que suba o nível dos oceanos,
antes que a ilha em que naufragas naufrague,
antes que o sal torne saudades de pedra os sonhos,
volta ao continente onde nasceste,
onde a terra não acaba logo em precipícios insalváveis,
onde os pés se seguram e seguram a razão
alta e direita como se seguram os olhos num horizonte
de montanhas que excitam a imaginação e
a curiosidade da descoberta ou o sossego.

Volta a ti antes que o tempo esqueça
o teu nome de criança.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Todas as palavras dentro

A tarde faz-se espessa sem nada para dizer
e eu sei que tenho todas as palavras dentro
(dentro tenho as palavras todas, eu sei)
mas está fora o papel vazio e há ainda uma ânsia
que me esmaga sem piedade o desejo de ser
o que não consigo ―ser― e escrever é este suplício
de nada dizer mesmo tendo como num cofre
fechado o peito a guardar as palavras vivas.

A morar na névoa

Foi a névoa que me trouxe ontem
de regresso a casa, o caminho todo
lento e lento, pesado, a envolver
a noite em purpurina sob as luzes
brancas e vermelhas,
vermelhas e brancas,
dos faróis dos automóveis moventes.
O trânsito era raro e brando:
ninguém queria ser guia
que atravessasse a cortina opaca
até o asfalto ignoto, o amanhã.

Já é amanhã e a polpa da névoa
persiste a dosar
o impacto da visão no horizonte.