Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

terça-feira, 30 de março de 2010

Fracasso

Passei a noite com a dignidade na mão
a colar os pedaços
em que se partiu o fio delgado que nos unia.

Foi os dedos que colei.

domingo, 28 de março de 2010

Química

Agacha ao pé dela
para procurar nun vinilo ―dixo― unha lembranza
que lhe quere mostrar.

Entón coma quen non quere a cousa
querendo
agarímaa cunha man que se distrae
do dedillar polo andel da outra.

Gosto do cheiro do teu cabelo ―sentencia.

Manda truco, este fulano
―inspira ela, contrita toda―,
cativo do que non é meu en min,
prendeume agora a unha marca de xampú.

segunda-feira, 22 de março de 2010

No dia da véspera em que fui ao teu encontro...

Nada permitia prever que
no dia seguinte
um estremecimento
intimo e profundo
me fosse acordar
da letargia.

Nenhum sinal havia às tantas
nos poisos do café
menos nas estrelas
(sempre a fingirem de vivas)
nem no arroz de sarrabulho.
Parecia, ao longe, um sábado qualquer.

Talvez algum deus aborrecido forçou o destino
numa estudada combinação de factores
desviando o curso da derrota
pelos meandros
duma lição de história a modo de preliminares
até o altar da consagração.

sexta-feira, 19 de março de 2010

A pretexto

Esqueci o guarda-chuva
assim como abandonei
nos teus lençóis
o rasto essencial da pele

inconscientemente
subconscientemente

no instante
único
a que nunca regressarei.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Mãos

Se digo mãos, digo só as tuas,
substantivas, dadas,
em mim que já me perdi nelas
procurando-me;

digo
a juventude
que em falas antiquíssimas
me sussurra em todos
os cantos meus
(áreas-sons)
moribundos;

digo
as que vi pousadas na mesa da sala,
antecipadas
em escritos,
invasões,
colonizações,
acordando-me,

digo
as que ouvi reptando-me,
guias de trevas penumbras clarões fulgores
abrasando-me apaziguando-me
tuas.

Se digo mãos,
é cativeiro dos meus sentidos em ti
que digo: o teu nome aqui dentro.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Espaço reservado (segunda parte)

Pintar versos na rua seria bom, mas depois, quem os leria?

Lê-los-iam os tristes, meu,
que caminham de olhar no chão
extirpando o próprio desconsolo
dos espelhos;
os pequenos,
cuja ambição não alcança os botões dos semáforos;
os cansados, que reptam devagar
tentando não incomodar as pressas
dos que correm por chegar antes a nenhures.
Lê-los-iam os que moram na palavra,
pé ante pé,
esquecendo ontens,
ignorando amanhãs.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Espaço reservado

Admira-me que tenha de haver espaços reservados para pessoas frágeis,
que as gentes não se saúdem quando se encontram na porta do elevador,
[a subir e descer pelas escadas

ou visto de aqui, aldeia aldeíssima,
esses urbanitas que para cá vêem por causa do menor preço da vivenda,
[sem nada quererem saber de ervas, dos bichos que esmagam,

só alcatrão e muros altos, ignoram o bom dia-boa tarde no caminho,
como dizendo
—E esta velha agora a falar sozinha?
—Será que pensa que me conhece?

Sozinhos todos a falarmos por telemóveis e internetes
com desconhecidos, que desconectamos à vontade,
que matamos quando nos cansamos deles,
como tamagótchis.

Alguém me disse há pouco:

Depois da poesia é tudo uma merda.

Vamos é pintar versos na rua!