Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

domingo, 29 de agosto de 2010

Espaço sem som

Perdeu-se-me no passado a voz tua,
talvez já definitivamente,
e nem escavando com a ferramenta toda
útil dos neurónios além da memória
achei nada ou silêncio, nenhum eco,
apenas espaço sem som
que em pânico me abala:
um filme mudo de gestos no ar,
olhares biunívocos e acenos,
lábios nos lábios ainda tímidos,
pele assenhoreada de pele,
palavras sobre palavras desenhadas
na pauta calada dum horizonte
ao contrário que se afasta.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Ninguém que seja

Escrevo e desescrevo frases
quebradas na insónia
para ninguém que vive,
ninguém que amo,
que desejo,
que passa pelas minhas mãos doentes
e me arranca de sonhos com final feliz
que escrevo e desescrevo
cada noite ao fio da madrugada
quando tudo cala e ele já não é
ninguém que seja.

Esquecemento

Do que me resta e nada
no mesmo baleiro se baralla
e xa o tempo
(o tempo, ese que foxe de antigo!)
efémero que tanto descoñezo
esvara pola estrada adiante
nos magmas que cospe e me abrasan
os momentos na fraqueza
da memoria
do que me resta e nada.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Ilusão apenas nas margens da realidade

Nos messes do desespero foram
ruindo as muralhas da cidadela.
Ninguém ha de erigi-las novamente.
Conquistará o vento os esconderijos
mais lôbregos e as ruelas tortuosas
por que passeei os dias
na procura de paredes nuas onde
encostar-me para não me alastrarem
as sombras pensamento nem fortuna.

Morarei agora sob o entulho
verde-musgo e a terra ruça
na aguarda das noites infalíveis
que me amparem do teu fulgor ausente.

sábado, 21 de agosto de 2010

O que eu son antes do verbo

Tenteime enraizar con palabras-
-uñas na fortaleza da casa.
Só, tras uns segundos de ataxia
e teimosía extenuantes,
me bateu no rostro enfebrecido
a falta de paredes e alfabeto,
de chan, de teito ou cume
ao que elevarme e sima
en que caer eternidade adiante.

Son apenas trazos e puntos
en suspensión
que o ar indolente arrastra
sen esforzo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Nenhures em mim

Desliguei-me do mundo e do espelho
nestes tempos últimos, verão ainda,
para me explorar corpo dentro
os sentimentos e corpo fora,
as sensações fluviais mais transitórias.

Não fiz anotações de campo,
apenas registei em marcas húmidas
riscadas pelas unhas gastas na parede
os dias que me fugiram
na mudez dos dedos estéreis.

A quem quiser ouvir e acreditar, direi
que nessa viagem descobri um tesouro
que ocultei, sovina, à avidez do olhar alheio.
A ninguém hei de revelar as coordenadas:
perdi a palavra-passe ou a memória.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O vestixio dun ollar que me agrilloa

Desprézome do mundo inadvertida
de tanto que me inzas nos adentros,
externo inaprensible ou apalpable,
lembranza que se estende e me gabea,
ou murcha (consoante a circunstancia).
Entálome obcecada de horizontes
no letargo mol en que me estrago,
na voz que se encarniza coma farpas,
tal visco parasita nos artellos,
na anquilose que me lastra á pexa
das horas que o reloxo xa non toca.
Pobóanme as néboas de invernía
os ósos e agrillóame o vestixio
dun ollar coma rémoras os azos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Brevíssimo solo de harpa

Quando as saudades me ferram
vendo o olhar num lenço turvo
e na pele visto o teu dedilhar de sedas
titubeantes, tacteando-me (toda):
faz-se um instante apenas
em mim que permaneces,
um crescendo que me crava,
um canto que me cavalga,
um berro que me banha
só um instante...

Já no instante a seguir
perde opacidade o pano e
esgarça a gaze por que me galgas,
o ricto rói no rosto,
crispa-se o corpo e quebra
o ventre verberado,
some a harpa e da janela um clarão
despe-me abrupto
e trépida expele-me
à solidão antípoda.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Na descida

Se algum beijo me sobra, disse-lhe, é para ti.
Na verdade eu sabia que beijos,
beijos
já não me restavam.

Há mentiras que magoam fundo
a quem as diz.

E a dor sempre tem um degrau mais baixo
à espera.

sábado, 7 de agosto de 2010

Derradeiro aviso

Fáltame tempo. Xa non pido
nin dou paciencia. O meu tren
hai moito que partiu
e por diante agárdame apenas
a fin do traxecto:

a estación abandonada
na que só eu me hei de apear.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Nada me quero á luz

Nada me quero exposta e rota aos dardos
dos ineptos, nada e nunca!, que pescudan
entre as liñas tecidas polos dedos
o fracaso, a quebra, o erro
para os espetaren no marcador fluorescente
como éxitos do ego descomunal
que ostentan, na súa mediocridade insípida,
en vangloria explosiva polas prazas públicas.

Quérome nas tebras, na lúgubre sonoridade
do silencio aconchegada, a cuberto
de taxacións que me enxalcen a tanto por palabra
ou me sentencien á pena do desdén dentudo,
consoante aos catálogos de modas adxectivas,
de posturas-poses e ultramodernismos...

Nada me quero se non é na escuridade
do diálogo clandestino que nos nutre,
no sosego do delirio en que me embalas
de mans abertas pola madrugada adiante.

Quérome querer apenas, na noite,
onde ninguén me espreita. Contigo.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Não-coisas tantas para fazeres no durante

Arrolo para a Laura


Faz não-coisas tantas que não precises mais dos afazeres.
Abre as mãos ao sol quando aquece e alumia
o mar do entardecer que te afaga e confunde os pés
na areia excelsa dos desacompanhados
―o seu próprio rumor rendido
numa camada transparente que fervilha
em cócegas de sal pequeninas―
com o fluir do sangue ininterrupto
a avivar o tacto da língua no presente.

Faz não coisas à beira-mar em diminutivo que sabemos.
Perscruta na excitação branca da barra
as gargalhadas que explodem submergidas
e desvendam na mistura das águas
comboios-barcos dum antigamente
mágico. E olha como desenham
num fumo de vapor esfarrapado
a fragilidade do instante que a custo,
a lágrimas, se segura pretérito. Escuta,
o ouvido sobre a via morta
num faz-de-conta de far-west do filme
a preto e branco da infância,
a sirene oceânica em vagas que vêm e vão
e vão e vem e vão e vão até encerrarem
o eco rectângulo do teatro em sagrado.

Faz não-coisas no esplendor da memória persistente.
Estende o corpo mudo à fecundidade da luz
e deixa-a cultivar na pele, um por um,
o porvir de cada vez que te pertence,
o anelo do imprevisível e a carícia dum olhar
adormecido no colo, febril e entregue
às notas graves da voz ainda
dele a ressoar pelas ondas em tropel
que manam para afadigarem a ausência.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Instantâneo

Abandonei a navegação em alto-mar
para me entranhar aos fundos de mim
e me cabotar pelas margens esquivas
sem outro rumo que o desejo de
encontrar
na tela fiel que se expõe nos olhos dele,
numa esplanada qualquer, no interior,
ateados no sol carnal do fim da tarde,
o meu sorriso.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tras o paseo cotián da atardecida

Agoiro a derrota na cegueira das solas
gastas das botas que enfrontan
o solpor tripando na estrada abrasada.

Regreso calcando no rastro antigo
cos pés en carne esmorecida,
vertendo folgos ao ar que me sustenta.

Non me asoma aos ollos o sorriso
cando saúdo os pasaxeiros
con que comparto a brisa da maré subindo.


(Tranquei a porta da casa
para lamber en soidade a sombra fértil
e as migallas dunha ausencia.)