Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

sábado, 31 de julho de 2010

Cair contigo

Digo-te hoje e aqui que vou saltar da falésia
e contigo
se me segurares a mão no fio frágil e (in)tenso
dum sussurro.

Digo-te e mais te digo que vou trancar os medos
ao mistério
sem sopesar distâncias ou fundos
cataclismos.

Digo-te e ainda digo que na descida ao incógnito
brutal do abraço
não hei de empenhar na bússola um grau que seja
do alento

de que te digo preciso para cair contigo.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

A sabedoria do corpo

Choro pelo corpo
todo.
Dizem disto que é transpiração,
mas eu
(desculpem lá)
tenho a certeza de que são lágrimas.

O corpo sabe (ao sal).

terça-feira, 27 de julho de 2010

Interregno

De repente instáurase o desgoberno.

Espazo e tempo
encaixan no lugar e na hora debidos
consonte ao plan de voo imprevisto:
espulgo as plumas,
estendo serena as asas,
abro ao ar o bico ávido (e brado barbaramente!),
peto paseniño pé ante pé
no chan
á procura do pulo
que coma ave me (e)leve
nun rodopío
a planar na efémera ventanía do acaso.

Hoxe estreo caderno de viaxes antigas ao garete.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

No mar alto...

Quen porfía en nadar sobre o mar alto
cando á vista non hai terra
nin boia
en que afincarse
e no horizonte asoman
os vestixios do naufraxio
indefectible?

Quen non se abandona ao abandono
cando fallan as forzas
e no fundo
sen fin das tebras
hai unha serea que pregoa
a bondade acolledora
da branda area?

Non quebres co teu canto a codia
escamenta que me esmaga
a ansia
de máis unha brazada ao nada.
Non a escaches. Baixo a cotra
irisada das palabras
hábitame o baldío
oco da renuncia.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Paleontologia do porvir

Nutrido e erigido à sombra dum texto da Pau

Sobram só quartos vazios
na alma cheia de nuvens
e um corpo
que esfarela
na noite e no dia
se extingue
como animal pré-histórico, contorcendo
a agonia
dos passos pelas areias movediças
que o devoram.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Caixas como o ponto final

As caixas de papelão
esmagam-me o corpo quando toca o despertador.
E o galo porfia em perfurar o nevoeiro
para além da janela
com o seu grito
que me acorda como quem acorda
do sono a um pranto
por fora,
por dentro
caixas, caixas, caixas.

Caixas de papelão pelos quartos,
pela sala,
pela cozinha,
pelo corredor,
caixas multiplicadas no espelho,
tudo é e é tudo
caixas, caixas, caixas.

E nas caixas livros,
filmes nas caixas,
discos presos em caixas.
Títulos que dedilhei com os ouvidos,
que percorri com o dedo mudo,
que me segredaste à boca e aos cabelos
ecoam-me ainda no olhar e sabem-me à
melodia quebrada duma já-não-viagem
ao fundo de mim contigo,
em caixas calando-me,
cegando-me,
ensurdecendo-me em caixas,
caixas, caixas, caixas!!!

A vida tua inteira em peças miúdas,
notas, letras, fotogramas e
um pedaço mínimo incomensurável
do que já é a minha inexistência:
caixas, caixas, caixas.

Pesa-me a tua vida
no corpo meu inerte
esta manhã e já tantas
como o fantasma de centos de caixas
que me ronda e me alastra contra a aurora:
caixas, caixas, caixas...

A mágoa do irrealizável guardada em caixas.

Asneira é melhor do que vazio

Escreve à presa, deixa
asneira sair se tem de sair.
Escreve.
E diz, grita,
grita, diz o que quiseres.
O que quiseres constrói,
com namorado enciumado ou
o que quer que for,
imagina(-me),
inventa(-me),
sente(-me).
Escreve-me.
E classifica, desclassifica, codifica.
Pega nas personagens, manuseia-as, larga-as.
Escreve.

Escreve-me.

domingo, 18 de julho de 2010

Coordenadas elípticas

Entregou-me um cartãozinho
com o endereço e um mapa.

―É só poesia e teatro ―segredou-me clandestinamente.

Se me virem entrar porta adentro
se nunca mais me virem sair,
calma!,
não me procurem.

Encontrar-me-ei lá eu
num único verso livre,
o que me foi destinado
na antologia
dum poeta esquecido na prateleira
do futuro anterior.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Decrepitude

Qual a natureza dos meus sonhos, dizes?
É uma natureza morta:
eu servida num travessa,
de cerejas ornado o corpo,
na pretensa sugestão da carne
brunida, dura e doce.
Ao fundo na parede um relógio,
o pêndulo imóbil.

É só nas pinturas e nos sonhos
que o tempo sustém a fome.
Por fora da moldura
medra o bolor dos dias.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Ginástica pulmonar

Eu digo-te como amanhece.
Tem gosto ao sal no café
e nuvens coladas nas janelas.
O oxigénio rarefez-se ametal
de sopros
na minha tabela dos intervalos
irregulares.
Ofego, pois,
nos filmes que não vejo ao teu lado,
nos silêncios com que te não toco.

Eu digo-te como amanhece.
Sai o sol e canta
sempre o galo vizinho:
aspiro,
expiro,
aspiro...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Manual para as sobrevivências

Perfaço dias,
um a um,
na tua ausência.

Destilo-me,
bebo-me,
vaporo-me.

Quebranto-me,
do tudo ao nada,
conserto-me.

Arrevesso-me
da cabeça aos pés
mastigo-me.

Executo-me
golpeando as letras
sobre o papel.

Costuro noites
entre estrelas:
ressurjo ainda.

domingo, 4 de julho de 2010

Manhas

Perfumei o alento
com peçonha para as traças,
as tuas traças todas.

Beija-me.

Caridade é não

Impessoas como predadores
de léria fácil (e burra),
que redigem
imundices grosseiras
assoberbadas
num centro só delas
há com fartura e fedem-lhes
no suor da alma
as toxinas
e ainda se apregoam
em factótums do benefício alheio!

Digo-te:

Nada tem de altruísta a escrita.
Ninguém vomita para alimentar os outros,
―fora alguma ave de bucho inchado
(faz-se tudo pelas crias)
às ordens dos genes regurgitantes―;
cospe-se para ver os outros
colados ao visco da frase,
presos no fascínio do pêndulo
que percorre na abscissa da página
os afectos ou os ódios,
tal qual deus, tal qual diabo
no tempo dum verso.

Dir-te-ei:

Caridade é não,
antes sede da sede
doutrem por este sangue.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Oração para antes de acamar

Para a Rosa
Um dia destes
deixo-me sepultar
por uma tonelada
de palavras
colocadas por ti no sítio incerto,
e juro que nem protestarei,
tão leve me será
o peso delas
quanto fundo o meu silêncio.

Vou-me abraçar para quando as lágrimas
chegarem não me encontrem sem abrigo.