Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Vento

Está o chan estrado
de paraugas rotos,
como aves,
cadáveres,
o voo truncado
polas avenidas.

No ar, unha invasión
de follas mortas
que se cren paxaros,
e gallas esgazadas
polo chan,
a liberdade breve.

E eu sen asas que perder...

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Túrbido sangue

Non paga a pena remoer
nos imposibles.
Píngame o corazón tinta e
nin sequera é vermella,
só cinza a toldar as bágoas
que flúen latexando
polas corgas que labrou
a tenrura
inventada.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Escamas e ecos

...de un no te quiero querer.
¿Y cómo huir cuando no quedan islas en que naufragar?
Peces de ciudad
. Joaquín Sabina.

Às vezes arribam à minha costa náufragos,
seduzidos no faiscar de escamas
dos peixes que morreram sobre a areia,
julgando que alcançaram uma estrela*.

Mas não tarda o dia em que regressam
ao mar de que vieram derrotados,
queimados na aspereza destas praias,
secura nas promessas de diamantes.

Passado o tempo, deles só resta um eco:
as suas vozes implorando água
antes de se perderem no nunca mais
do oceano de que vieram.

_______________
* Ou as minas do rei Salomão?

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Nocturno

Desdurmo nas trevas o novelo finito dos segundos,
habitada de in-sonhos,
desapossada de porvires.
O corpo é um desprazer de agulhas
álgidas que semeam brasas em músculos e ossos,
lancinantes,
cáusticas,
de que vingará a desolação.

Vem do caminho o lampião a me perfurar as pálpebras fechadas,
tremeluzindo em disfarçada ilusão de estrela
entre a folhagem decrescente do bordo japonês
a que o vento, irado com o mundo,
dá asas caprichosas.

E não durmo e não durmo
sobre o leito de dentes que me cravaste,
antes de a virares do avesso, na pele:
maninho e descarnado sequeiro!

P.S.:
Disto, afirmam eles, não se morre;
mas na dúvida, discrepo:
Desviver o tempo minguante
não é tricotar passos de moribundo?

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Nuvens e claros

Às vezes é agora e no quintal,
que é o mundo,
tem uma luz tão radiosa
e limpa
que a gente pensa:

Será que se abro a janela
vou ver o meu rosto desenhado no ar
como num espelho?

É assim o outono: contrastes.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Onde é nenhures

Fugir é morrer dum lugar...
"O dia em que explodiu Mabata-bata" em Vozes anoitecidas. Mia Couto


Nem sei quem sou
nem onde existo nem se...

É noite nas horas todas da escuridão,
falta de luz tudo, sombra de avaros tons,
sobre a devastação ampla das ruínas
—entulho, lixo, nem pó— que sou.

O lugar veio-me ao desencontro.
Tecto nem chão me amparando,
esboroaram as paredes no meu corpo
rebentado,
nenhurando-me.

domingo, 8 de novembro de 2009

Recondensação

Talvez convenha transcrever a limpo
com orgulho fátuo, em frases alinhavadas, claras,
de caligrafia escolar,
a prosa mágica dos domingos.

Um caderninho datado aparece,
solitário e prenhe de antigamentes esculpidos,
runfar de merengues, a música dele,
evocações de fantasias e imatérias,
de miragens nunca alcançadas.

As alegrias parvas nem se sabem ocultar,
antes se vestem de panos e estrelinhas nos pés,
perdição delas
em mãos dos assassinos de cores e pirilampos.

sábado, 7 de novembro de 2009

Permissão negada

Era uma vez uma pergunta.

Alguém comentou que se ouviu o silêncio matando as palavras,
resposta retórica
à esperança estéril do regresso.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Isto passa

Não fosse o que sei
(que isto passa),
partia-me de mim convertida
em asas, em nuvem,
partícula de nem-nada.

Isto passa,
tem de passar,
sempre passou.
Passa como os minutos,
nem restos, nem rastos.
Passa.

Não fosse o que sei
já nem soluço era,
eu levitante.

domingo, 4 de outubro de 2009

Litomorfose

Deu agora em praticar a desobediência
ante a vontade
tanta
minha.
Cérebro comandante
é ninguém nem nada superior
a exercer poderes vãos.

—Come! —ordena.

O tal como se chovesse,
insubmisso,
águas que lavam lágrimas.
E chove.

Nem suplicando cede.
Está que nem pedra surda e cega,
petar que não comove,
este estômago.

Como se não bastasse
a presença pesada no peito
de latejar manso, lento?
Se calhar é um processo involutivo,
invasivo.

Quem sabe
não vire aos poucos
o sal diluído estátua
e eu seja afinal
a mulher com nome dum outro Ló,
ancorada no passado,
lume e enxofre na olhada,
pés de barro?

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Domingo de tarde, tarde

A tarde é só interrompida pelos cheiros
gasolínicos de motas d'água, barulhos
de impressionar raparigas em riquezas
só de brilhos.

E eu aqui a te reclamar atenções
com a única arma de meu corpo nu
apagado:
as palavras mudas.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Com licença

Para o O. M.

Documentava-te agora mesmo
com os papeis meus autênticos,
fosse assim fácil fazer igual dizer:
data de nascimento e nacionalidade,
que me sobram tanto
nestes dias de lusco-fusco e outonos.
E era tão bom que fosses tu eu,
só ante as autoridades competentes
e para que conste:
bilhete de identidade,
permissão de residência,
carta de conduzir e amar
nesta terra de tão altas fronteiras
em que naufrago, nada sendo.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Parte meteorológico

Este vento é do sul e acorda-me
com os sons de madrugada na N13
(barulho de camiões principalmente)
Não tarda em chover.

Nem amortecido se ouve o rebuliço dos pardais,
à procura de espaço e mais uma migalha de pão.
Também não tintinam os ferreirinhos nas bigornas frágiles
nem contemplam admirados o seu reflexo
sobre o vidro do meu gabinete,
a balançarem no cordel do mosquiteiro
como pêndulos da hora certa.

A melodia dos piscos nem se anuncia
ainda
nos seus olhos ausentes de enorme desconcerto escuro.

E as rolas,
com o cheiro a pólvora recente baixo ás as,
emudeceram.

Há para aí um melro a namorar entre as gardênias
(nem deve saber que já vem sendo outono),
mas sempre um gaio me adverte do perigo que sou eu.
Oi, ssst, silêncio!
Duas pegas discutem a propriedade dum ovo roubado
e meia dúzia de corvos em assembleia extraordinária
abrem um oco entre o nevoeiro.

Este vento vem do sul, com certeza:
não é a tua respiração no meu rosto
acarinhando-me.
De aqui a nada, chove-me.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Desvariações sobre o mesmo tema: Tu

Desescrevi-te as cartas e as histórias:
fui uma por uma apagando as letras,
os meu pouco tanto é muito do princípio
os tua tudo tanto é nada do final,
os nunca alguns de beijos
e os abraços sempre nenhuns.

Desenchi as ausências do vazio
em abundância que me resta;
de espaços brancos, as solidões e as noites;
de razão, os inermes sentimentos.

Nas promessas e nas juras desfalei-te,
desteci-te de sorrisos as olhadas,
missangas de lágrimas eu a toda página
tilintando na amanhecida cama
até a tinta secar e virar coalho o sangue.

Como asas de beija-flor
desdesenhei as mãos tuas esvoaçando
moribundas já,
me fugindo.

sábado, 29 de agosto de 2009

O nome

Anónimo é sinónimo de desânimo
semeando dúvidas na identidade,
manto de invisibilidade que a gente veste
ou sombra e nada que nos tornam outros.
Sou ninguém às vezes,
nem definição tenho,
não ser inexistente nem inerte inanimado objecto.
A olhos de quem não vê, lixo que nem estorva;
à vista de quem procura, ausência escasa.

De aí vem a necessidade, acho,
de pronunciar alto e claro o meu nome
nesses dias em que me perco.

sábado, 22 de agosto de 2009

O meu quimbanda?

Sou curandeira das frases doutros:
é esse o meu ofício silencioso.
Não elevar a voz, que ninguém repare nas cicatrizes.
Mas que dói às vezes tanto ser sombra,
tanto espectro, tanto nada,
tanto lutar contra infecções sem remédio,
incompetências alheias,
lidar para dotar de alma
carne que só merece sepultura.

E a mim quem me protege da miasma
que me corrompe o sangue?

domingo, 16 de agosto de 2009

Desestrelação (versão)

Num documentário, conta o astrónomo, em cujo nome não reparei (desculpe-me por isso, mas foi só a frase que me prendeu nos ouvidos), que cada átomo que nos forma foi parte antes dalguma estrela. E eu...

Descontemplo as mãos,
ignoro-me também nos dedos com que já não te escrevo;
e das carícias inexistentes repelo-me, enxoto-me;
enxoto-me também dos cheiros de vocação evocadora que não mais
—não mais, não mais, não mais— te conjuram;
desouço a voz rouca e gasta que já nem o teu nome pronuncia;
renego-me nos pés que te não caminham, vereda,
ai vereda,
veredinha verde de descobertas por mim trilhada que foste.

Ou no de dentro mais interno esculco:
o coração exaurido;
os pulmões que amarfalhou tanto alento teu ausente neles;
o fígado enorme a rebentar o abdome, intoxicado de mágoas como vermes;
os tristes intestinos inomináveis.

E a luz? Onde a luz?! —grito.

A luz da estrela que fui atomizada, diz-me,
ficou presa na noite em que não mais me amaste?

sábado, 15 de agosto de 2009

Retroverso

Já antes de te receber me despido
despedaçando-me em adeusezinhos.

Despírito

para acumular dores
o mais das vezes
bastou um desamor.
"Que sabes tu do eco do silêncio?". Há prendisajens com o xão. Ondjaki


Como quem ama
abro a porta e saio ao encontro
da luz.
A luz? Qual quê?
É só ruído.

Trevas, agonia, desalmamento.

O dia não vai ser já nunca nunca
algum dia.

Ausência sentida

Morreu a noite
e ficou
o crepúsculo incandescente suspendido.
Nunca virou palavra incorruptível:
bugias, lâmpadas e faróis,
lanternas e olhos —os teus— acessos,
inconsequentes brilhavam:
nenhum rumo me marcando.

No céu ausentaram-se as estrelas,
tanto mais a minha, longínqua terra
das originais saudades: dor.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Desconcerto

(Prestidigito-te veloz em versos que nem lês,
taciturnando-me desprezativo.)
—E se eu calo, falas tu, nem que seja à intempérie?
—Não, não —digo-me que diz ele, o emudecido falante—,
só quando tu (eu) falas é que falo eu (ele).
—Devo então fiar diálogos comigo
como se tu comigo os fiasses
e debater contra o espelho que me não devolve a razão
os silêncios que me prestas transpirando sons surdos?
—... —nem por ele respondo.
(O silêncio é uma imensidade de búzios unissonantes.)
—Que não ouço a resposta! —grito.
—Qual era pergunta? —as mãos interrogam.
(Até que enfim os ecos findaram. E eu, agora, digo o quê?)

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Point of no return

Agora é virar a página,
escrever ponto,
viver não, sonhar não,
imaginar sem sentimento.

É alimentar a desconfiança,
que deposita os ovos seus filhos,
receios diminutos de longos incisivos,
nos cantos mais remotos da mente,
à espreita do instante oportuno
para atacar, roer, consumir-me
sem pressa, letais parasitas.

Agora é virar a página
e encontrar
que o caderno acabou
antes de iniciado.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Desmodus rotundus

Corre, vá lá,
procura, rápido, um pretexto para a desistência
e foge.
Amortalha-te no manto da invisibilidade
(Definir estado aqui já!),
antes que o bicho te ferre as ânsias...
(Ai!)
para logo a seguir sair de fininho,
borboletador, borboletando
magnífico,
(Oh...!)
a pingar
ping-ping-ping... ping-ping...
as quase sempre derradeiras gotas de sangue
tuas.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Pôr do poema

Os poemas assaltam assim sem avisar,
pela estrada fora,
e às vezes extraviam-se
no caminho
no instante preciso em que o olhar pousa no sol


que está



e já não está.

domingo, 28 de junho de 2009

O verbo inexistente

—Falou-se de ir,
de voltar ninguém disse nada,
pois nunca nada é o mesmo e voltas,
voltas não há.
É tudo e sempre idas,
idas sem paragens.
—Sem paragens?
—Até.
—Até...?
—Até um dia.
—Pois.

—É sempre um ir constante,
o rumo marcando-se sozinho,
em livre alvedrio dele,
troça dele.
A gente (tansos!) acha que dirige,
que tem poder para modificar a capricho curvas,
pontes e túneis, engenheirinhos da vida.
Não tem nada.
A gente obedece e caminha,
caminha sempre.
—Sempre?
—Até.
—Até...?
—Até um dia.
—Pois.

—O medo, o amor, o sofrimento
ficam atrás,
reais imaginários,
e à frente é só vazio que aguarda,
paciente e convicto, os passos devidos.
Mas regressos ao lugar que já foi pisado? Isso é que não.
Isso não, nunca.
—Nunca?
—Nunca.
—Nem até...?
—Nunca é só nunca mesmo.
—...

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A frase (quebrada) e o poema

Já me esvidrinhei toda de agulhas
pelo sangue, luzinhas de espelho em sala
escura

r
a
r
e
f
e


i
t
a





s.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Momento

De frente é a escuridão,
a nada às costas,
tu tocando ai,
cordas, cordas, cordas, ar vibrando,
eu aqui escutando,
a voz, a voz, a voz, ar vibrando,
entrelaçando-me na imensidão do som,
uma rajada de dor que surde para sumir
entre as tuas mãos.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Enlevo tóxico

A frescura dum dedo contra os lábios
no corpo dolorido
aliviando
um único ponto em que o prazer se concentra,
ai o prazer único de não sentir dor num ponto!

Se me diluísse agora no ar
seria a êxtase fatal:
tu respirando-me,
envenenado...

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Desdém

Hoje acordei com vontade
de me prefixar em des de tudo,
de tudo quanto representa o avanço ao retrocesso,
renegando-me dos outros,
que é me negar duas vezes
às ambições reles
da espécie.

sábado, 6 de junho de 2009

Inquilinismo

Entras pelo meu cérebro
como se fosse território teu.
Centrifuga-se o mundo,
e enquanto eu minguo,
vais-te tu crescendo em mim fátuo,
senhorio, mandante,
reclamador das rendas e subserviências
toditas.

Aviso:
Esta-se a ver que um dia rebento
e onde eu fui gente
ficas tu intempérico desavolumado.

terça-feira, 26 de maio de 2009

J. P. Sartre ao direito

Os outros sempre têm trinta anos.
São eles só os lúcidos,
os da palavra certeira,
os que se defendem da crise,
os felizes, os iluminados, os elegidos,
os que conduzem bem,
os que pescam as melhores trutas,
os que dominam a ferramenta musical e mecânica,
e a matemática.
São eles unicamente, só, os outros,
que debatem em profundidade de política e economia,
que atingem cumes e sucessos,
que encontram na feira as pechinchas
e no hipermercado se desenrascam pelos corredores
manejando com desenvoltura o carrinho abarrotado,
os que mudam as cuecas a diário (faça ou não faça falta)
e navegam pela internet em banda muito larga.
Em geral, têm também casa com jardim,
ou apartamento dúplex com vistas ao infinito.
Mas isso é só os outros.

Os outros, enfim, que não nós outros:
os tristes, os perdidos,
os filósofos de papel reciclável...
em inglórias horas.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Para quê?

Das minhas muitas desistências últimas
há uma que desprocura razões,
quer-se dizer, interroga-se sem aguardar resposta
sobre benefícios e vantagens,
propósitos e emendas
de companhias e solidões várias.

À pergunta pensada com ânimo de não ofender
a mão estendida e a porta aberta
substitui-a o pretexto físico formulado,
que é cansaço de fora,
mas de dentro é fastio.

A retórica tem assim estas inutilidades.

sábado, 16 de maio de 2009

Cativério

A cidade que me abriga tem por nome
todas as letras do alfabeto
para lhe eu cantar soletrando a melodia
na ribeira sobre o fundo
dum bramido indiferente
à aragem macia
que me embala enquanto
estendo o corpo sobre a pedra
côncava e ávida do calor
que emana o meu alento
ao mussitar
o nome da cidade que me envolve.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Passos

Transito de pés descalços sobre as pedras frias
que vão construir memórias,
cavalgo as ruínas das ilusões
eludindo o cepticismo irónico
que me acena de sobrancelha arqueada
e sorriso a meio pau
acomodado.

E vou...
Vou indo ainda de asas despregadas
e mãos tíbias
ao encontro do que sei nada,
ávida,
ébria,
incandescente,
cega visionária!

Sei que é mentira o sonho, eu sei,
mas quando pouso um segundo límpido a língua
no vidro do desencanto,
estala em cócegas mínimas
o bafo
e os punhos abrem-se-me estrelados
e caminho mais um pedaço
sobre as pedras frias até vira-las
lembrança transitada.

E assim vou, vou...
Vou indo ainda.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Incessante

Tenho de deixar o café a deshoras,
definitivamente, digo,
porque é noite e acordo
intuindo o teu sorriso esculpido
e fantasmas que falam as palavras tuas.

Tenho de beber mais café a deshoras,
evidentemente, penso,
porque é noite e durmo
só vendo o perfil da tua ausência
e os espectros que calam quanto não me escreves.

terça-feira, 5 de maio de 2009

A consciência

Bem sei... mas
sem lhe querer tirar beleza à imagem e mesmo assim tirando-lha
inevitavelmente,
a espinha,
a que a mim me fere,
reside na boca do estômago e é de ferro, de ferro
enferrujado.

No que diz respeito à fatura, vou-a pagando em incómodos prazos
e na morte do pássaro
liberado.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Futuro imperfeito

Esculpirei sem pedra,
por exemplo,
e negarei o que sinto nas pontas dos dedos
quando te escrevo.

Falarei de alto,
como quem diz
quero-te (sempre em presente)
e aguardarei que traga a resposta o eco.
O eco.

Sonharei para dentro
e continuarei tecendo
teias de aranha
nos olhos, nos olhos meus.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Estigma

Estás no outro canto da mesa redonda improvisada
na que partilhamos música e conversas alheias,
não dá para falarmos.

De quando em vez miras para mim,
eu miro para ti de vez em quando
e no momento em que me sorris dos olhos,
sei que percebeste,
sabes que percebi
e sorrio para ti de dentro.

Nas despedidas, só tu te achegas,
só tu me pousas a mão no ombro, leve e cálida,
e logo os meus dedos acariciam-te nas costas um quase nada.
Beijo-te, beijas-me
e os nossos pômulos roçam-se, doendo-se.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Mensagem não solicitada

Bato na tua porta
insistentemente,
tensa,
expectante.

Não me respondes.
Fico de fora com a palavra na boca
e cara de SPAM.

sábado, 18 de abril de 2009

Presente em mim

Tantas vezes me fugi,
tantas vezes o futuro me devolveu
ao presente euzinho.

Agora já me deixo ficar nele em mim,
enterrando as saudades de futuro
que nascem e nascem,
teimosas;
inventando o passado...

dessonhando-me.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Zero mais zero é nada

Num princípio foram minutos,
horas depois, dias...
e são semanas, quase meses,
são interrogantes.

Até quando?
Ou... porquê?
Entre outros vários.

E nem gritando alto,
nem sussurrando
chegam respostas.

No entanto
continuo somando,
somando ausências.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Definir estado aqui

Indefinível é
este arrastar-me mendigando uma resposta:
não te escrevo,
não te falo,
nem te sonho;
só me escrevo em ti,
em ti me falo,
em ti me sonho,
reptando-te sem alcançar nunca
os teus ouvidos cegos de me leres tanto,
de tanto mais me negares,
abafando-me os gritos inqualificáveis,
a gramática anã,
os verbos desconjugados,
o meu desconcerto fragmentado em hipóteses
sem norte.

Descrever-me é me cinzelar
indeterminavelmente discordada.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Abril

April is the cruellest month
T. S. Eliot, The waste land: The burial of the dead

Nada há que me perturbe,
nem a ausência a pele seca me humedece.
Era tanto num princípio o desencanto,
que não deu para me encantar desesperanças,
nem para sonhos de sonhar novas esperas.

Afinal é sempre Abril
e nunca Maio,
sempre promessa...

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Náufraga

O tempo fugindo...
Na hora das estrelas
todos os relógios marcavam a hora certa,
que era nenhuma:
a do navegar imparável,
a dos contínuos instantes.

E eu em estática inércia,
escutando o seu zoar de velas despregadas
sem aborda-lo.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Avaliação de danos

Tantos quantos havemos de nos encontrar no inferno,
no eterno.
A Terra estremece-se
e os homens cubicam na hora do jantar, de frente ao televisor, os danos:
tanto de ruína,
tanto de tijolos, tanto de papel couché,
tanto quanto de benefício.

Num outro algures vai chovendo sobre vivos e mortos
por igual,
e nem a todos sabem as gotas grossas
mais salgadas.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Reticências

...

(As minhas reticências,
quando sós,
já sabes, significam falta de palavras.
Podia dizer lindo, comovente, pele na pele,
imenso até.
Mas sempre haveria alguma coisa que ficasse por dizer,
sempre entendidos a mais
ou
entendidos a menos.

Deixo-me, pois, no silêncio da voz

quebrada.)

domingo, 5 de abril de 2009

Tanta vida estragada

Falaste verdade no que depois calaste:

No momento da morte,
no final,
tudo o que ficou para atrás
-não só os pesadelos, os sonhos e as alegrias também-
deve parecer
coisinhas baratas, ninharias,
para quem contempla a grandeza dum cajueiro em flor iluminado pela lua cheia.

Mas até então...
cá vamos estragando flores e luares em embrulhadas absurdas.

sábado, 4 de abril de 2009

Precisava me desapossar de sentimentos.
Era o único caminho possível.
Assim leve.
Assim fria.
Avanço agora.
Estou por cima de tudo e nada.
Trespassei o limite do juízo, desajuizada.

Só.

Como na morte.

Menos que nada

Não te esqueci. É só que estou menos que nada.
Necessitava tanto um abraço, uma carícia.
Tenho frio.
E saudades tuas.
E falta de palavras.
E nada para dar.

Beijos, antes que me esqueça como se dão,
que o que se sente... já não me lembra.