Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

domingo, 27 de junho de 2010

A palabra como esencia

Camiño, ende ben,
porque as mans aínda che saben
cubrir de substantivos
a ausencia do verbo:

inmateria, viño, laio,
contacto, memoria, tanxerina,
pensamento, historia, gargallada,
domingo, frío, escultura,
cemiterio, brinquedo, canela,
xoenllos, antoloxía, insomnio,
aperta, pan, arqueoloxía,
mamilos, xelado, vogais,
película, fiestra, pracer,
bacallau, butaca, silencio,
estante, chaves, fonte,
música, mans, pataca,
chan, cabelo, sida,
tortura, calcetíns, virxindade,
adega, bico, ombro,
lentes, mensaxe, moqueta,
toalla, cheiro, ascenso,
sagrario, ollos, espello,
abstracto, catedral, pés
(continuará?)

Tácticas de existencia

Extravieime nunha paisaxe de imprevistos,
accidentada de penedos que sen razón ningunha
me obstruían o paso,
me esganaban os folgos,
me batallaban a incerteza das vitorias
noutro milenio antigo perdidas.

Partín os pés pero avanzo
sobre os tocos,
turro e sangro polos cornos
lama e penumbra,
tebras ás veces.

Son, na imbecilidade máis absoluta,
inocente da loucura allea.
Por iso non me bato en duelos:
a morte vén garantida de fábrica,
certificada pola Norma ISO 9001,
estando penado o seu incumprimento
coa suspensión perenne da vida.

Pola contra, desdirecciónome
no ascenso esgrevio
tanto canto a estratexia me permite
mercé a labores de distracción
que me libren, no posible, de tropezos,
facadas, de ollares torvos ou silveiras:
de trampas sedentas, fundas.

Záfome.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ao fio duma fotografia


Pré-tangas-me no cais
contra a tela do rio
a reflectir as luzes da cidade
e acordar uma memória
feliz de adolescência remota:
acampada no Bois de Boulogne,
ilegal
(à Rita roubaram-lhe do estendal as calzinhas),
almoços no restaurante universitário
italianos malucos
maluqueavam-nos,
baguettes e croissants...
um café numa esplanada e nunca mais,
também o que não se conta:
no fim sobraram os francos
de estar tudo tão caríssimo.

Naquele então a raia era nítida
e saltamo-la.

Periscopiei-me

Hoje anoiteci girafa,
em toda altura de mim
vaidades,
e saí a passear as ideias soltas
e as solidões
em liberdade vigiada,
vista sempre em frente
e atrás babas de caracol.

Reparem: ainda tenho pulso
e as mesas da esplanada são brancas,
as cadeiras cómodas,
a leitura plácida.
Não há ninguém comigo no paraíso.


(Isto está uma paz assustadora.)

Poetando-lhes (bonitamente) os arrotos (I)

Andam os cachorros das espanhas
com impunidade de estrangeiros
pelas esplanadas tugas
―verão foi sempre verões―
a devorar congéneres quentes
prévio arrefecimento dos ditos
sobre a mesa assim tipo metálica,
ocupadas as bocas em vozes
de que abrolha incontida
a euforia hormonal em flor.
Acompanham-se dum líquido
(de aspecto nada sedicioso, sedífero, sedutor?,
se bem se pensa, não que importe),
a modo de mostarda,
cuja fórmula prospera
com zelo em caixa-forte
junto a um rato criogenizado
e várias estrelas ao calhas,
com que insuflam o estômago
da imatéria aérea exacta
para assassinar a cozinha mediterránica
a graves notas ex-abruptas,
sem desculpe-mes.

Aqui ao menos ninguém fala de bola.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Pedido para me manteres na insabedoria

Inqualificável
é adjectivo útil como
recurso estilístico culto
na indefinição das minhas ignorâncias.

Ando para aqui com uma sede
de redondos vocábulos, exactos,
que me mostrem o endereço
certo do infinito.

Vai-me ensinando, então, em meias doses,
mas nunca me sirvas todos os mistérios
que se ocultam entre
o sujeito
e
o predicado.

Se um dia aprendo tudo
morro logo na página seguinte.

Do outro lado do espelho a vida

Sol e lua
abraçam-se
muito pouco cientificamente
sobre o céu azul pálido
que antecede o lusco-fusco.

Há quem diga que as metáforas
não condizem com a realidade.
Eu digo não:
é a realidade que desdiz
da essência nutriente da vida:
a palavra cria imatérias que existem,
nos existem.

Última escena sobre a vía morta

Instaláronme controis de acceso
ás plataformas nas estacións
e xa as despedidas se ofrecen
con sabor a chicle sen azucre
anticipadas na barreira xiratoria.
Nada de bicos imposibles en ansia
sobre o vidro embazado do vagón,
nin panos brancos a bater as puntas
na distancia coma pombas que desmaian...

(Apenas un atraso imprevisto na partida
podería permitir
que a aperta se prolongase
na pel acolchada do abrigo
filtrándose por todos os límites
da seguridade castrante.)

Pártesme en soidade
e en desolación pártome
contra un taboleiro de luces intermitentes
e as megafonías barbaramente babélicas
que anuncian billetes de balde a ningures
para todos

só de ida.

sábado, 19 de junho de 2010

Onde não se morre de todo...

As minhas mãos,
a segurarem as páginas em labaredas
contra a vontade deste vento zombeteiro,
tão desconfortável,
são duas barrigas de lagartos
mortos de três dias,
nesse exacto rigor flácido e cinzento
quase branco.

Não se inventaram cremes, acho,
que atalhem a putrefacção interna
da carne. Porém, a epiderme ainda
evita que espalhe no ambiente
folcloricamente festivo da tarde
o fedor do cadáver que me nasce.
Além do mais, ninguém ouve,
por obra e graça dum obnubilaçãozinha qualquer,
sobre a relva fosforescente
do campo que o televisor confiado exibe
os meus cem mil pardais em agonia
a baterem as asas, a soterrarem os olhos
com a transparência delicada
de quem sabe evitar incómodos
ao público, em geral.

As minhas mãos,
ao fecharem o livro incendiado
contra o desejo líquido dos humores,
tão impertinentes,
cobram uma tonalidade verde azulada
e contorcem-se para redigirem sem tacha
este estado de desânimo
numa esplanada onde não se morre de todo
porque sim.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Tudo se transforma

Na alva em que tu virou ele
e me descobri a falar contigo.
Para Laura Ferreira dos Santos

Não tem medida a dor
nem tenho eu espaço bastante
para a guardar
nas gavetas secretas do poema,
antes me transborda das margens
do caderno
em que rascunho,
ilegível mente,
a rosada insistência do amanhecer
que me assalta
após a noite,
mais uma,
despida
do abraço em que fiquei presa
querendo sem querer;
despojada
de metas a longo prazo:
o mundo é aqui e agora,
nesta mágoa única e minha,
nestas lágrimas únicas e minhas,
que a sós para ele,
em memória,
se transformam.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Sin regreso

Se me ha muerto la infancia en
la curva de las pájaras,
allí, en lo más alto,
donde nunca faltan
con sus capirotes ágiles
esquivando el rumor repentino
del motor en calma.

Se me ha muerto el ámbar
que gotea de la piel agrietada en el tiesto,
lento, lento, lento ya para nada;
y los tomillos, el espliego, los enebros,
las sabinas, el cantueso y sus latines,
se me han ahogado
en un pozo de agua que fue fresca.

Se me han muerto las liebres en sus camas,
los conejos en las morenas, las perdices en las lomas,
y entre trigales,
antes del incendio de rastrojos,
las codornices que aletean,
los topillos subterráneos,
se me han muerto todos,
los arrendajos y su parentela de urracas,
grajos, grajillas y cornejas,
entre las lilas el carbonero leve y el jilguero
en el huerto de almendros y manzanos.

Se me han muerto
uno a uno
todos los nombres de los pueblos:
mi lengua más brava.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Segredos partilhados

Alimento-me de chocolates e poemas:
é assim que me nascem as palavras.

Sou triste.

Aprendi, contudo, que a felicidade é
um balão colorido sempre a fugir
que só com os dentes se agarra
por uns instantes preciosos...
mas ao trinca-lo, ansiosa a gente por retê-lo,
explode
no rosto
e dói.

A descer da Lapa o Porto acolhe-me
com o aroma doce e pesado
das tílias que me devolve à infância.
Aspiro-o fundo, devagar, e exalo-o.

Avanço
sem espreitar nos espelhos retrovisores
as sombras.

domingo, 13 de junho de 2010

Arnês no ar

Correria agora pelas margens
de mim
para que sobrasse, talvez, uma esteira de gritos
sem eco...
Mas está tudo em volta minha
sem edifícios
e não tem pele a ausência
de ti
em que amarre a linha de vida
que me suspende em quedas livres,
absolutamente livres
sobre o futuro.

As convulsões que me sacudem
no turbilhão do infinito
em que me destranco e voo
quebram-me o fôlego
e a espinha:
não me matam,
antes morrem-me
aos pedaços.

sábado, 12 de junho de 2010

Declaração de intenções soturnas

Hoje,
mais um hoje,
apetecia-me
mesmo e mesmo
ficar num knock-out eterno...

Mas não aprendi ainda a coragem covarde da desistência radical.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Autorretrato impaciente à machada

Ninguém pense que me conhece
porque venho aqui a vomitar cuspe
ou bílis. Tenho vida atrás que chegue
e alguma, menos, à frente,
em que não afundo tanto que me afirme.

Tenho,
para os pormenores a cinzel,
o gesto seco e ausente,
os dedos fracturados de tanto desavir comigo,
os pés a dez centímetros do chão
e muito perto da cabeça:
nada que provoque vertigens imprevistas
nem sangue fora do papel.

Em estratégia, ai!, sou de derrota certa:
antes me vence a retirada
do que o desprazer duma baioneta
arrancada a pingar
o confete vociferante das vitórias.

Do resto também nada se aproveita...
nem para esterco.

À mostra

Desenvolver
―o que quer que for―
conforta?

Agir metodicamente é imprescindível
para levantar as camadas com sigilo:
escolhe-se um campo assoalhado,
esfola-se o inoxidável com lâmina de aço,
com vagar retira-se o adiposo panículo que amortece
e abre-se em lascas
―até que enfim desvendado!―
o mistério do cerne
pulsante,
sanguíneo,
nervudo,
antes de tanger com agulha sensitiva
no osso a melodia da fragilidade.

Ora bem... Em geral,
os espectadores carecem de coragem,
―fora da devassa clínica ou morbosa―
para contemplarem
a exposição pelada
duma ausência no desfalecimento
e o olhar vidrado dos voyeurs
antes morre pela penumbra vulnerável dos jardins
em noites aluadas
sobre epidermes pálidas.

De aí a solidão da carne sob a intempérie!

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Invólucro

Nesta casa non hai fiestras:
tapieinas con ladrillos
de revolta e rabia
para que non me fuxa a luz
e as tebras non entren
a tripar nos pétalos de estrela
que agonizan polo chan da sala.

Non hai portas nesta casa:
clausureinas con trancas
de madeira nobre e rexa
para que non entren monstros
a roldar nas pantasmas
asustadizas
que me acompañan ao almorzo.

Ceguei a cheminea con cinzas pesadas
para que a calor non fuxa do lar
nin escorra a néboa ou o orballo
a tintinar pola feluxe das paredes
a sua lentura amarga.

Non hai neste corpo ouvidos
nin ollos hai que me vallan,
tampouco labios que escachen:
só estómago túzaro
e o choqueleo trópego
dos postigos
que o alento sacode
coma latexo inconstante
a entrecortar os laios
e o sono... para nada.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Só porque si

Talvez o merlo cante porque non sabe
recibir doutro xeito a madrugada
tal como eu, ollos abertos
e corazón fechado,
empuño o rotulador e queimo pontes
que non me arden
nos trazos vermellos con que avanzo
polas páxinas coma se nada e todo
ou todo e nada
coma que
coma cantando sen gana
como o día rompe sen permiso da escuridade
así o mundo no seu sitio coma sempre
e nunca xa o mundo coma antes
como o merlo, eu, sen motivo á alba.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

E ainda dizem que o surpreendeu a morte...

Não é aos mortos que surpreende a morte
mas aos vivos que ficam
na surpresa presos à impresença
desprovida,
ao silêncio dos espaços em branco,
ao intacto dos corpos incorruptos em duas dimensões,
aos cheiros que persistem na derradeira camisa
ou no livro marcado pela página cento e trinta e um.

Não é aos mortos que a morte arrasta
mas aos vivos que reptam ao seu encalço,
extraviados os gêpêesses,
pela noite fora,
tacteando as margens dos precipícios sem eco,
com bolhas gritantes por dentro dos sapatos
e o gesto de espanto ferrado no rosto
ao ganharem o muro vazio do horizonte.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

matéria completa

a madeira é a matéria
de
árvore morta
matada
que cresceu
para ser
sombra
alimento
cama
dócil
e minguou
para ser
cama
sombra
alimento
hirto
morna textura
armação estável dos desequilíbrios
nas rotinas que sobrevivem aos nomes

terça-feira, 1 de junho de 2010

Noticiários

Está o muro das lamentações
ardendo
e eu que não posso ouvir as notícias
sem te apalpar com os dedos
as indignações
no lugar de preferência
das listagens
alfabeticamente ordenadas
afogo a angústia
num copo de água
(não há jôtabequinze que me conforte)
no instante em que o mundo começava.

Quebro e recomponho
para quebrar logo e assim...
está tudo em volta minha
de sorrisos partidos.