Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Já parti os espelhos

Penso que talvez eu morri já:
só que não consegui habituar-me
a essa ausência dos gestos e rotinas.
É por isso que me visto cada dia,
faço a cama e sento à secretária
em que escrevo muito vagarosa
como se ainda estivesses a aguardar-me.

Penso que talvez eu morri já.
São sinais este po que tudo o cobre,
tantos livros empilhados pelo chão,
esse copo que está ali meio vazio,
cá este ramo de secas sempre-vivas,
o relato inacabado da memória,
um abraço em que não mais nos entranhamos.

Penso que talvez eu morri já:
por isso está uma pira à minha espera,
os músculos fraquejam e a vontade,
revigoram-se as dores e os silêncios,
instalou-se o passado nos armários
e pressinto que nos olhos tenho cinzas,
não que as veja, que já parti os espelhos.

Penso que talvez me matei já,
mas careço de forças para enterrar-me
no cinzento céu da trovoada.