Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Caixas como o ponto final

As caixas de papelão
esmagam-me o corpo quando toca o despertador.
E o galo porfia em perfurar o nevoeiro
para além da janela
com o seu grito
que me acorda como quem acorda
do sono a um pranto
por fora,
por dentro
caixas, caixas, caixas.

Caixas de papelão pelos quartos,
pela sala,
pela cozinha,
pelo corredor,
caixas multiplicadas no espelho,
tudo é e é tudo
caixas, caixas, caixas.

E nas caixas livros,
filmes nas caixas,
discos presos em caixas.
Títulos que dedilhei com os ouvidos,
que percorri com o dedo mudo,
que me segredaste à boca e aos cabelos
ecoam-me ainda no olhar e sabem-me à
melodia quebrada duma já-não-viagem
ao fundo de mim contigo,
em caixas calando-me,
cegando-me,
ensurdecendo-me em caixas,
caixas, caixas, caixas!!!

A vida tua inteira em peças miúdas,
notas, letras, fotogramas e
um pedaço mínimo incomensurável
do que já é a minha inexistência:
caixas, caixas, caixas.

Pesa-me a tua vida
no corpo meu inerte
esta manhã e já tantas
como o fantasma de centos de caixas
que me ronda e me alastra contra a aurora:
caixas, caixas, caixas...

A mágoa do irrealizável guardada em caixas.