Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

E baixe o pano...

Sobre un proxecto frustrado que se funda?
E sobre esta penumbra que tolda os diálogos?
Sobre a urxencia sometida á presión dos entreactos?
Sobre o silencio oculto tras fonemas vacuos?
(U-lo apuntador que non responde
cando o chamo ao meu auxilio?)

Non hai papel que nutra
a caldeira rebentada do drama.
Escoan ácidos os excesos de impudor
e xa o público se nega ao desenlace.
De nada serve reclamar a devolución
dos cartos á farsa mal representada:
o fracaso permanece no sangue
e pinga.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

De mans feridas

Petéirame o tempo nas nocas
e sangro
lene
a agonía demorada.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Por um segundo apenas

Apeteceu-me sobre o (des)café,
entre o último poema e
as crianças que brincavam na praça,
escrever-te uma carta
com todas as palavras que se perderam.
Não encontrei nas mãos
os dedos suficientemente vivos.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A minha vez

Aparecesse Ela agora à porta,
sem o aviso prévio entregue,
e pronunciasse,
o dedo indicador na mão-revólver,
a sentença irrevogável:

―A seguir, vais tu!

fitá-la-ia, sem medos nem escusas,
e voltar-lhe-ia as costas para fazer as malas
de que não precisarei para essa viagem:
a travessia por que irei ao meu encontro,
o caminho para dentro de mim.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Terra!

Não preciso de inventar palavras
para reconhecer o universo
Apenas aspiro a criar o discurso 
que me devasse 
de dentro para fora
de baixo para cima
de lado a lado
como o que sou

A Descoberta

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Dos versos que voam

em 9 de Dezembro de 2010

Não há meios-paraísos
nem neve de que dias se façam:
inventam-se para isso versos
que como os passos também
dum tango à deux se dançam,
entrançados
no abandono os braços
que levam sem levar
num pacto de entrega
até ao fim da melodia.

Depois o verso é livre,
pássaro-tu.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Ante diem septimum Idus Decembris

E como fugir à transcendência
com que o dia se enfrenta,
esta ausência nítida de peso
e medida em segundos incontáveis?

Há em cada ano esse momento
em que torna a chover por volta
das três horas da tarde,
ninguém sabe bem para quê.


(Quiçá a lua resista esta intempérie
de deuses proscritos e vinho que se bebe
como sangue no dia equidistante
dum mês que perdeu o seu sentido.)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Advento

Pasarei polo nadal como
se non existise (eu?, deus?):
un día igual ao outro día,
igual ao que ha de vir
(e son todos tan distintos!)
lámpadas led na partilla equitativa
dos afectos envurullados em papel de cores
e fitas vermellas que me prenden os pés
a un abeto de plástico verde.

Pasará por min o nadal como
se non existise (deus?, eu?).
Talvez mañá neve no presebe estrelas,
un sinal da cruz e unha bóla de vidro
dourado escache á luz da candea
derradeira do advento. Nos anacos
que o chan retén cortarei os pés
reberetados de fitas vermellas,
sen un grito, sen remorsos.

Ninguén me procure submetida
á sonora agresión das panxoliñas.

Escuridão nos passos

É neste silêncio que se vive
doravante noite e dia:
as mãos em cruz,
os olhos ao contrário,
cabelos emaranhados em labirinto,
as pernas sempre unidas aos pés
e ao pensamento, à boca.

É neste trilho que se escolhe
pelo eterno fora em sóis e luas:
o rumor do horizonte,
o mar sem derrota,
uma corcunda fendida de montanha,
as nuvens cristalinas que debruçam
ecos sobre a calma da poça.

Será nesse fluxo da voz apagada
que a claridade se vai reconstruir?

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A tua voz

Vem dum antigamente
este diálogo nosso pelas casas doutros,
do tempo em que morámos numa estrela,
quando em mim se estremecia a madrugada
com a tua voz de letras
gritando, sussurrando, nas cores do ecrã,
e a tua espera concluía enfim
noite dentro pela amanhecida minha.

Vem do dia que nunca iria ser
o monólogo a sós que trocamos,
do tempo em que os dedos faiscavam
ao contacto com o teclado que fazias vivo
num silêncio iluminado, numa luz calada,
numa distorção das horas roubadas
aos sonhos em que me ensinaste a descrer. 

(Não sei como sobrevivemos
quando estava escrito que a hecatombe
nos deveria rasgar em pedaços
impossíveis de recompor. Ainda bem.
Talvez foi só que sobrava um mundo por escrever?)

sábado, 27 de novembro de 2010

A fotografía que nunca farei

Esfarrápase o vapor no vao das beiras
en azul contra a foz do fundo, mentres
os cans, distraídos, levantan o voo
das garzas alertas, que grallan
agora dolorosamente e imitan,
suspensas de materia grave, follas
aínda tersas que regresasen ao abrigo
das pólas impúdicas dos amieiros,
indultadas, así, á putrefacción,
prontas para máis unha vida,
para máis outra morte.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Como foi ou é

Para a Rosa
Há filmes na memória
que o espelho multiplica e amplifica,
côncavo ou convexo, e tergiversa,
distraído do tempo e dos sentidos
que nele embalde se reflectem,
antes como abraços, comunhão,
agora instantes em duas dimensões
e uma só (múltipla) lembrança viva (ainda)
para os situar no ponto exacto,
no valor exacto da ternura.

Mente o espelho por omissão
de calor e palpitações,
de texturas, sorrisos sem lábios
que os desenhem evidentes.
Falsea a imagem desde a superficialidade
dúplice das lâminas de estanho e vidro.
E não há câmara que grave
o íntimo discurso de cada gemido,
o sobressalto fundo da pele,
a eclosão interna do afecto.
Nunca os fotogramas saberão explicar
a quarta dimensão do silêncio.

Não há espelho
nem há câmara
que digam ao certo como foi ou é.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Esfuminho

Seis meses é meio ano:
é muito, parece nada.
Tantos dias (e as suas horas,
mais os minutos delas:
não cabem no tacto todos
os segundos desta ausência).

Seis meses é meio ano:
é pouco, parece tudo.
Tantas palavras (e os seus ecos,
mais os espaços sem letras:
não entram na voz todos
os sons deste silêncio).


O meu sotaque dissipa-se
enquanto te abraça ar,
quando te beija vazio.
A ternura impronunciada.

Fala-me sempre

(Agora sei que)
nunca sobra o que se fala
mas o que não se disse.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Se ainda me quiseres levar...

Em Urueña

Cai-me pó aquático de nuvem
nos óculos de longe
com que te leio.
Esta poalha anda, sem licença,
a embaciar-me a memoria
(um tule cinzento flutua
e desprende a purpurina
do sol que peneira).
O espaço que te ofereço é um lugar
de quatro sílabas
amuralhado de condicionais
a pressagiar a tua materialização
ausente.

Todas as portas fecharam
ao vento do norte
que se encostou às paredes,
às luzes apagadas no silêncio das casas.
Os habitantes repetem-se nas esquinas
desde qualquer ângulo que a lente surpreender,
e os olhos, trás a fresta das cortinas corridas,
espiam o desfile demorado do cortejo
vivo dum pedido sem resposta.

O frio regelou-me os lábios mudos
na hora de partir.

Antiácido

Corrosão é resultado do veneno
do corpo à intempérie impregnado numa
tela de bondadezinhas,
essas que destilam
vampiros mascarados de beija-flores,
sangue encardido nos dentes,
fétido e frio o alento.

Apaguem-se os vestígios de vómito
e adormeça-se no embalo
dum andamento sinfónico,
poco allegretto, como quem diz,
agora sim, eternidade.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Monólogo com bola ao barulho

 Para o Fernando
Urdiria para ti um poema se gostasses
da cadência em que se exprimem
as ligações entre-tecidas dos fios
que nos juntam na conversa sempre adiada.
Mesmo que fosse preciso ao fundo
acrescentar uma baliza e um golo,
daquelas cores certas, tu sabes,
que te enredasse neste canto
nas horas em que as mágoas se consertam.

Mas há um espaço que se multiplica
cada noite e eu perdi os fôlegos
para atravessa-lo. Já só sei escrever
frases tresmalhadas do diálogo
que foi marcado para ali onde espera
o tesouro do arco-íris perfeito.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Dilixencia para dúo de araña e xente

Matino pola araña que teño sobre
a cabeza o que ela nin matinar soña
e conto os fíos que tece como se
contase, un menos un, os días
que minguan, sen alimento,
bicho-poema (o veleno á espreita),
que levar á boca ante a estratexia
calidoscópica dos ollos atentos
da única mosca aínda viva.
Propóñolle abrir as ventás
desta casa sen horas certas.
Que corra o ar e as moscas.
Nada responde, resérvase, outorga.


A araña está con fame
e desmaia sobre as palabras
o desespero. Coma min.

sábado, 6 de novembro de 2010

Preâmbulo a um passeio de mota em dia sábado

Tem vocação suicida o tempo:
é preciso matá-lo antes que nos mate.
(Eu, nem lembro onde)

Virá o inverno mais tarde,
mais cedo, o seu cerco contra
a insubmissão cada vez menos
resistência, menos rebelde.
Flácido o anseio, toldada a vista,
quem guerreará?

Hoje, porém, está nevoeiro e amanheci
em ânsias dum sulcar vales
desarrumado e lento.
Vou mergulhar o instinto na massa
do mundo, vou sentir a carícia
das nuvens no pedaço de cara
que contém os olhos
e liberta lágrimas.

Porque é outono ainda e
amadurece em mim um sonho
como romã que rebenta
viva e líquida
para alimentar aves
de passagem.

Vou-me esvoaçar.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Disturbio

Hai tanta sombra neste azul celeste,
neste disturbio oco que se descompón,
arpón que crave o seu son agreste
e reste azos á miña boca entón.

Trebón de riscos celestiais que estende
e prende os lustros contra a túa ausencia.
A esencia fráxil do que non se aprehende
entende apenas de luminescencia.

Silencia a boca e o tormento cala:
é bala que fura feroz no esp'rito.
O grito que ao lonxe este corpo exhala
entala na gorxa o seu folgo atrito.

Proscrito extingue na sombra o xeo
que reo de ausencia me callou no sangue,
tangue o grito do teu nome. E refreo
o arreo de rédeas-morte que te abrangue.

domingo, 31 de outubro de 2010

Matrecos

Vêm lá do fundo próximo a alastrar
a tua voz em dias de defuntos, matrecos
na memória, tenteia
contra si próprio a força
da infância: (quase) sempre vence.

Acrescento mais uma peça
ao incógnito, presente
no passado a compensar
ausências de futuro: perco-me
nele para completar-te-me.

Desenhas num sorriso
um tempo bom, a três,
um bom tempo, o golo
que nasce do ataque desconcertado.
A única vitória possível (ei-la!)

É em mim a espreitar
que os pulsos doem.
Faz-se a loucura de pairar
tanto sobre campo alheio.
Esta loucura amarga que me habita.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Das mãos a concha


Nada sustém a concha das mãos, fora a ilusão do
amparo do rosto do
ser
(verbo, substantivo?)
isolado,
inacabado,
part
ido.

A concha de pedra ficará no livro de pedra para a memória, imperecedoura, de pedra, a amparar o não-ser que é. Lembras?

sábado, 23 de outubro de 2010

Antes do poente

Achas que o apanhamos? O sol, digo.
Para aquecermos com ele as mãos
e fazermos faíscas com as pontas
dos anseios? Achas? Pudera!
Fosse uma balão de luz
e nós, as duas, a querer tê-lo!

Sobre cordas circulares

Ouço
e não preciso de ir ao fundo de mim
para me descobrir mil e uma lágrimas.
Talvez seja a música que ouço agora
até sentir as paredes estremecer
como tu ouviste quando eu nem era
a magia que nos une quando já não és.
É no ar que recupero o sentido
perdido, ilusoriamente circular,
das espiras que desenhaste em mim
sobre as frágeis cordas da memória.
Ouço!

terça-feira, 19 de outubro de 2010

A minha voz

Declamar-te-ia, dizendo-te simples,
a começar pelos pés,
fossem ainda as minhas mãos a
tocar-te, como cordas o teu corpo,
como dedos em ti os meus dedos,
que tocam ar só agora, vazio,
sopros sem vento, melancolia.
Dizer-te-ia simples, declamando-te,
a começar pelos cabelos,
fossem ainda os lábios meus a
beijar-te como ânsias o teu peito,
como olhos em ti os meus olhos,
que vêem terra só agora, cova,
cores sem luzes, a nostalgia.

Calou tanto esta minha voz, deserta.
Já não tenho sotaque a embalar-te.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

No final da tarde (mais uma), outono

É a ironia, onde desliza a arma da nossa obscuridade.
Herberto Helder. “Poeta obscuro”. Os passos em volta

A praça arrefece comigo hoje:
aninho-me nos braços da cadeira
e envolvo-me no azul que me sobrou.
Mais sal do que sol mastigo: lábios.
Sinto rajadas brutais de calmaria
doce a agitarem-me os circuitos
da razão: talvez a mesma pomba,
o mesmo freguês. Apenas eu
sou outra que se dilui na nostalgia
dum gelado de morango. Sorrio ainda?
A praça explode comigo dentro.
Apanho os meus pedaços de gelo
e reinicio a caminhada à escuridão.

O homem segue os passos do cadáver
com um sorriso inútil. Neguei-me.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Poema-bolo recheado de cianeto

Comia as palavras sem qualquer
adubo, nem sal nem canela, cruas,
atendendo apenas ao valor alimentício
necessário ao desempenho funcional
dos órgãos.

Um dia ―era já noite morta―, descobri
no quarto mais luminoso da casa
a cozinha e a farinha, os ovos inteiros
―descascados―, a batedeira. Aprendi
a brincar com fogo brando
na panela.

Dei então em pesar as palavras
na balança das precisões instáveis
e em colocar ao lado de cada uma o preço
a pagar por devora-las, eu no interior
oferecida como creme de amêndoa
amarga.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Alheamento

O essencial é ligar o silêncio ou
então apagar o sinal, que as interferências
não firam a tensa fragilidade do dia,
para chegar ao entardecer de objectivos
cumpridos e corpo virtualmente inerme
ao roçamento das sombras e ao premente rumor
das vozes que se assolapam, espectrais.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Virar a página ou chorar

Talvez aprendi a orgulhar-me de mim
enquanto apanhava na língua as migalhas de amor próprio
que sobraram na toalha cintilante da noite.
Calquei na térrea firmeza do chão, os pés como lagartas,
e lancei-me a imaginar o voo derradeiro das borboletas
que viria com o alvorecer dos dedos e o orvalho
luminescente a atear-me um sopro de humidade ainda.

domingo, 26 de setembro de 2010

No final da tarde, outono

Está um silêncio tíbio na praça
que já não recebe ombros nus
nem óculos que disfarcem olhares
ou desejos pendurados dos decotes.
Ressuma a tarde devagar na pele fina
do casaco e aqueço os dedos entalados
na chávena dum remedo de café.
Deambulo por tropos como viagens
nesta ilha sem fronteiras que me abafem.
Petisca aos meus pés uma pomba
o farelo do bolo que me adoçou
as horas da penumbra iminente.
Paguei a conta, guardei-me no livro.

O homem segue os meus passos lentos
como quem vê afastar um cadáver.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Limpeza

Estrulla información e datas,
apaga xestos,
risca acenos,
borra ligazóns e imaxes,
cala os acordes todos e os compases,
disimula as palabras dentro da orde
caótica e impoluta do escritorio,
elimina as fotografías unha a unha
e no desterro definitivamente
difumina o perfil
e lima as impresións dixitais do pasado.

No future.
Que todo quede en nada
e na nada nada sobre.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Dúas visións non-pre-vistas nunha terraza

Non-deja-vu un: infancia

Quería eu correr así
con toda a felicidade dun grito breve,
os ollos abertos coma homo-pratos
cara á muller que le poemas
mentres ti contas arrimado ao chopo
perseguindo de esguello (un,
dous, tres...) os meus pasos alados.

(...dezanove, vinte!)
E que non houbese agocho
en que me non atopases.


Non-deja-vu dous: madurez

Hai homes que camiñan de brazos
en arco e separados do corpo,
como se o seu corpo precisase
de roubar o espazo aos outros.
Son eses mesmos homes que camiñan
(sen mirar para a muller que le)
de pés para fóra en ángulo
digamos que agudo co seu pene.

Non hai estrada larga
que lles chegue.

Chocolate

Eu sei que tenho nos lábios
restos de chocolate.
Foi apenas essa doçura
que sobrou para eles.

Após o gelado é tudo
frialdade
(e chocolate nos lábios).

De tanto devorar palavras mortas
fui-me morrendo pelos olhos
para logo ressuscitar lambendo
dos lábios o chocolate que sobrou.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Ao abrente en ruínas

Hoxe erguinme material de derriba
ou demolición na esfarna
que a xeada maieira frustrou,
proxecto de cascallo na imprevisión
dun orzamento de vida escaso.

Agoireime no silencio que segue
ao esboroar catastrófico dos teitos
baixo o peso da poalla que non cesa
e os couselos okupas que se asañan
en tecer a intemperie allea miña.

As paredes, esas, serán dun descabalgar
vagaroso e bambo, imperceptible,
a abrigar aínda as trabes partidas,
os cacos punxentes das tellas
e as amoras doces das silveiras.

domingo, 29 de agosto de 2010

Espaço sem som

Perdeu-se-me no passado a voz tua,
talvez já definitivamente,
e nem escavando com a ferramenta toda
útil dos neurónios além da memória
achei nada ou silêncio, nenhum eco,
apenas espaço sem som
que em pânico me abala:
um filme mudo de gestos no ar,
olhares biunívocos e acenos,
lábios nos lábios ainda tímidos,
pele assenhoreada de pele,
palavras sobre palavras desenhadas
na pauta calada dum horizonte
ao contrário que se afasta.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Ninguém que seja

Escrevo e desescrevo frases
quebradas na insónia
para ninguém que vive,
ninguém que amo,
que desejo,
que passa pelas minhas mãos doentes
e me arranca de sonhos com final feliz
que escrevo e desescrevo
cada noite ao fio da madrugada
quando tudo cala e ele já não é
ninguém que seja.

Esquecemento

Do que me resta e nada
no mesmo baleiro se baralla
e xa o tempo
(o tempo, ese que foxe de antigo!)
efémero que tanto descoñezo
esvara pola estrada adiante
nos magmas que cospe e me abrasan
os momentos na fraqueza
da memoria
do que me resta e nada.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Ilusão apenas nas margens da realidade

Nos messes do desespero foram
ruindo as muralhas da cidadela.
Ninguém ha de erigi-las novamente.
Conquistará o vento os esconderijos
mais lôbregos e as ruelas tortuosas
por que passeei os dias
na procura de paredes nuas onde
encostar-me para não me alastrarem
as sombras pensamento nem fortuna.

Morarei agora sob o entulho
verde-musgo e a terra ruça
na aguarda das noites infalíveis
que me amparem do teu fulgor ausente.

sábado, 21 de agosto de 2010

O que eu son antes do verbo

Tenteime enraizar con palabras-
-uñas na fortaleza da casa.
Só, tras uns segundos de ataxia
e teimosía extenuantes,
me bateu no rostro enfebrecido
a falta de paredes e alfabeto,
de chan, de teito ou cume
ao que elevarme e sima
en que caer eternidade adiante.

Son apenas trazos e puntos
en suspensión
que o ar indolente arrastra
sen esforzo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Nenhures em mim

Desliguei-me do mundo e do espelho
nestes tempos últimos, verão ainda,
para me explorar corpo dentro
os sentimentos e corpo fora,
as sensações fluviais mais transitórias.

Não fiz anotações de campo,
apenas registei em marcas húmidas
riscadas pelas unhas gastas na parede
os dias que me fugiram
na mudez dos dedos estéreis.

A quem quiser ouvir e acreditar, direi
que nessa viagem descobri um tesouro
que ocultei, sovina, à avidez do olhar alheio.
A ninguém hei de revelar as coordenadas:
perdi a palavra-passe ou a memória.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O vestixio dun ollar que me agrilloa

Desprézome do mundo inadvertida
de tanto que me inzas nos adentros,
externo inaprensible ou apalpable,
lembranza que se estende e me gabea,
ou murcha (consoante a circunstancia).
Entálome obcecada de horizontes
no letargo mol en que me estrago,
na voz que se encarniza coma farpas,
tal visco parasita nos artellos,
na anquilose que me lastra á pexa
das horas que o reloxo xa non toca.
Pobóanme as néboas de invernía
os ósos e agrillóame o vestixio
dun ollar coma rémoras os azos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Brevíssimo solo de harpa

Quando as saudades me ferram
vendo o olhar num lenço turvo
e na pele visto o teu dedilhar de sedas
titubeantes, tacteando-me (toda):
faz-se um instante apenas
em mim que permaneces,
um crescendo que me crava,
um canto que me cavalga,
um berro que me banha
só um instante...

Já no instante a seguir
perde opacidade o pano e
esgarça a gaze por que me galgas,
o ricto rói no rosto,
crispa-se o corpo e quebra
o ventre verberado,
some a harpa e da janela um clarão
despe-me abrupto
e trépida expele-me
à solidão antípoda.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Na descida

Se algum beijo me sobra, disse-lhe, é para ti.
Na verdade eu sabia que beijos,
beijos
já não me restavam.

Há mentiras que magoam fundo
a quem as diz.

E a dor sempre tem um degrau mais baixo
à espera.

sábado, 7 de agosto de 2010

Derradeiro aviso

Fáltame tempo. Xa non pido
nin dou paciencia. O meu tren
hai moito que partiu
e por diante agárdame apenas
a fin do traxecto:

a estación abandonada
na que só eu me hei de apear.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Nada me quero á luz

Nada me quero exposta e rota aos dardos
dos ineptos, nada e nunca!, que pescudan
entre as liñas tecidas polos dedos
o fracaso, a quebra, o erro
para os espetaren no marcador fluorescente
como éxitos do ego descomunal
que ostentan, na súa mediocridade insípida,
en vangloria explosiva polas prazas públicas.

Quérome nas tebras, na lúgubre sonoridade
do silencio aconchegada, a cuberto
de taxacións que me enxalcen a tanto por palabra
ou me sentencien á pena do desdén dentudo,
consoante aos catálogos de modas adxectivas,
de posturas-poses e ultramodernismos...

Nada me quero se non é na escuridade
do diálogo clandestino que nos nutre,
no sosego do delirio en que me embalas
de mans abertas pola madrugada adiante.

Quérome querer apenas, na noite,
onde ninguén me espreita. Contigo.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Não-coisas tantas para fazeres no durante

Arrolo para a Laura


Faz não-coisas tantas que não precises mais dos afazeres.
Abre as mãos ao sol quando aquece e alumia
o mar do entardecer que te afaga e confunde os pés
na areia excelsa dos desacompanhados
―o seu próprio rumor rendido
numa camada transparente que fervilha
em cócegas de sal pequeninas―
com o fluir do sangue ininterrupto
a avivar o tacto da língua no presente.

Faz não coisas à beira-mar em diminutivo que sabemos.
Perscruta na excitação branca da barra
as gargalhadas que explodem submergidas
e desvendam na mistura das águas
comboios-barcos dum antigamente
mágico. E olha como desenham
num fumo de vapor esfarrapado
a fragilidade do instante que a custo,
a lágrimas, se segura pretérito. Escuta,
o ouvido sobre a via morta
num faz-de-conta de far-west do filme
a preto e branco da infância,
a sirene oceânica em vagas que vêm e vão
e vão e vem e vão e vão até encerrarem
o eco rectângulo do teatro em sagrado.

Faz não-coisas no esplendor da memória persistente.
Estende o corpo mudo à fecundidade da luz
e deixa-a cultivar na pele, um por um,
o porvir de cada vez que te pertence,
o anelo do imprevisível e a carícia dum olhar
adormecido no colo, febril e entregue
às notas graves da voz ainda
dele a ressoar pelas ondas em tropel
que manam para afadigarem a ausência.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Instantâneo

Abandonei a navegação em alto-mar
para me entranhar aos fundos de mim
e me cabotar pelas margens esquivas
sem outro rumo que o desejo de
encontrar
na tela fiel que se expõe nos olhos dele,
numa esplanada qualquer, no interior,
ateados no sol carnal do fim da tarde,
o meu sorriso.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Tras o paseo cotián da atardecida

Agoiro a derrota na cegueira das solas
gastas das botas que enfrontan
o solpor tripando na estrada abrasada.

Regreso calcando no rastro antigo
cos pés en carne esmorecida,
vertendo folgos ao ar que me sustenta.

Non me asoma aos ollos o sorriso
cando saúdo os pasaxeiros
con que comparto a brisa da maré subindo.


(Tranquei a porta da casa
para lamber en soidade a sombra fértil
e as migallas dunha ausencia.)

sábado, 31 de julho de 2010

Cair contigo

Digo-te hoje e aqui que vou saltar da falésia
e contigo
se me segurares a mão no fio frágil e (in)tenso
dum sussurro.

Digo-te e mais te digo que vou trancar os medos
ao mistério
sem sopesar distâncias ou fundos
cataclismos.

Digo-te e ainda digo que na descida ao incógnito
brutal do abraço
não hei de empenhar na bússola um grau que seja
do alento

de que te digo preciso para cair contigo.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

A sabedoria do corpo

Choro pelo corpo
todo.
Dizem disto que é transpiração,
mas eu
(desculpem lá)
tenho a certeza de que são lágrimas.

O corpo sabe (ao sal).

terça-feira, 27 de julho de 2010

Interregno

De repente instáurase o desgoberno.

Espazo e tempo
encaixan no lugar e na hora debidos
consonte ao plan de voo imprevisto:
espulgo as plumas,
estendo serena as asas,
abro ao ar o bico ávido (e brado barbaramente!),
peto paseniño pé ante pé
no chan
á procura do pulo
que coma ave me (e)leve
nun rodopío
a planar na efémera ventanía do acaso.

Hoxe estreo caderno de viaxes antigas ao garete.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

No mar alto...

Quen porfía en nadar sobre o mar alto
cando á vista non hai terra
nin boia
en que afincarse
e no horizonte asoman
os vestixios do naufraxio
indefectible?

Quen non se abandona ao abandono
cando fallan as forzas
e no fundo
sen fin das tebras
hai unha serea que pregoa
a bondade acolledora
da branda area?

Non quebres co teu canto a codia
escamenta que me esmaga
a ansia
de máis unha brazada ao nada.
Non a escaches. Baixo a cotra
irisada das palabras
hábitame o baldío
oco da renuncia.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Paleontologia do porvir

Nutrido e erigido à sombra dum texto da Pau

Sobram só quartos vazios
na alma cheia de nuvens
e um corpo
que esfarela
na noite e no dia
se extingue
como animal pré-histórico, contorcendo
a agonia
dos passos pelas areias movediças
que o devoram.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Caixas como o ponto final

As caixas de papelão
esmagam-me o corpo quando toca o despertador.
E o galo porfia em perfurar o nevoeiro
para além da janela
com o seu grito
que me acorda como quem acorda
do sono a um pranto
por fora,
por dentro
caixas, caixas, caixas.

Caixas de papelão pelos quartos,
pela sala,
pela cozinha,
pelo corredor,
caixas multiplicadas no espelho,
tudo é e é tudo
caixas, caixas, caixas.

E nas caixas livros,
filmes nas caixas,
discos presos em caixas.
Títulos que dedilhei com os ouvidos,
que percorri com o dedo mudo,
que me segredaste à boca e aos cabelos
ecoam-me ainda no olhar e sabem-me à
melodia quebrada duma já-não-viagem
ao fundo de mim contigo,
em caixas calando-me,
cegando-me,
ensurdecendo-me em caixas,
caixas, caixas, caixas!!!

A vida tua inteira em peças miúdas,
notas, letras, fotogramas e
um pedaço mínimo incomensurável
do que já é a minha inexistência:
caixas, caixas, caixas.

Pesa-me a tua vida
no corpo meu inerte
esta manhã e já tantas
como o fantasma de centos de caixas
que me ronda e me alastra contra a aurora:
caixas, caixas, caixas...

A mágoa do irrealizável guardada em caixas.

Asneira é melhor do que vazio

Escreve à presa, deixa
asneira sair se tem de sair.
Escreve.
E diz, grita,
grita, diz o que quiseres.
O que quiseres constrói,
com namorado enciumado ou
o que quer que for,
imagina(-me),
inventa(-me),
sente(-me).
Escreve-me.
E classifica, desclassifica, codifica.
Pega nas personagens, manuseia-as, larga-as.
Escreve.

Escreve-me.

domingo, 18 de julho de 2010

Coordenadas elípticas

Entregou-me um cartãozinho
com o endereço e um mapa.

―É só poesia e teatro ―segredou-me clandestinamente.

Se me virem entrar porta adentro
se nunca mais me virem sair,
calma!,
não me procurem.

Encontrar-me-ei lá eu
num único verso livre,
o que me foi destinado
na antologia
dum poeta esquecido na prateleira
do futuro anterior.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Decrepitude

Qual a natureza dos meus sonhos, dizes?
É uma natureza morta:
eu servida num travessa,
de cerejas ornado o corpo,
na pretensa sugestão da carne
brunida, dura e doce.
Ao fundo na parede um relógio,
o pêndulo imóbil.

É só nas pinturas e nos sonhos
que o tempo sustém a fome.
Por fora da moldura
medra o bolor dos dias.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Ginástica pulmonar

Eu digo-te como amanhece.
Tem gosto ao sal no café
e nuvens coladas nas janelas.
O oxigénio rarefez-se ametal
de sopros
na minha tabela dos intervalos
irregulares.
Ofego, pois,
nos filmes que não vejo ao teu lado,
nos silêncios com que te não toco.

Eu digo-te como amanhece.
Sai o sol e canta
sempre o galo vizinho:
aspiro,
expiro,
aspiro...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Manual para as sobrevivências

Perfaço dias,
um a um,
na tua ausência.

Destilo-me,
bebo-me,
vaporo-me.

Quebranto-me,
do tudo ao nada,
conserto-me.

Arrevesso-me
da cabeça aos pés
mastigo-me.

Executo-me
golpeando as letras
sobre o papel.

Costuro noites
entre estrelas:
ressurjo ainda.

domingo, 4 de julho de 2010

Manhas

Perfumei o alento
com peçonha para as traças,
as tuas traças todas.

Beija-me.

Caridade é não

Impessoas como predadores
de léria fácil (e burra),
que redigem
imundices grosseiras
assoberbadas
num centro só delas
há com fartura e fedem-lhes
no suor da alma
as toxinas
e ainda se apregoam
em factótums do benefício alheio!

Digo-te:

Nada tem de altruísta a escrita.
Ninguém vomita para alimentar os outros,
―fora alguma ave de bucho inchado
(faz-se tudo pelas crias)
às ordens dos genes regurgitantes―;
cospe-se para ver os outros
colados ao visco da frase,
presos no fascínio do pêndulo
que percorre na abscissa da página
os afectos ou os ódios,
tal qual deus, tal qual diabo
no tempo dum verso.

Dir-te-ei:

Caridade é não,
antes sede da sede
doutrem por este sangue.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Oração para antes de acamar

Para a Rosa
Um dia destes
deixo-me sepultar
por uma tonelada
de palavras
colocadas por ti no sítio incerto,
e juro que nem protestarei,
tão leve me será
o peso delas
quanto fundo o meu silêncio.

Vou-me abraçar para quando as lágrimas
chegarem não me encontrem sem abrigo.

domingo, 27 de junho de 2010

A palabra como esencia

Camiño, ende ben,
porque as mans aínda che saben
cubrir de substantivos
a ausencia do verbo:

inmateria, viño, laio,
contacto, memoria, tanxerina,
pensamento, historia, gargallada,
domingo, frío, escultura,
cemiterio, brinquedo, canela,
xoenllos, antoloxía, insomnio,
aperta, pan, arqueoloxía,
mamilos, xelado, vogais,
película, fiestra, pracer,
bacallau, butaca, silencio,
estante, chaves, fonte,
música, mans, pataca,
chan, cabelo, sida,
tortura, calcetíns, virxindade,
adega, bico, ombro,
lentes, mensaxe, moqueta,
toalla, cheiro, ascenso,
sagrario, ollos, espello,
abstracto, catedral, pés
(continuará?)

Tácticas de existencia

Extravieime nunha paisaxe de imprevistos,
accidentada de penedos que sen razón ningunha
me obstruían o paso,
me esganaban os folgos,
me batallaban a incerteza das vitorias
noutro milenio antigo perdidas.

Partín os pés pero avanzo
sobre os tocos,
turro e sangro polos cornos
lama e penumbra,
tebras ás veces.

Son, na imbecilidade máis absoluta,
inocente da loucura allea.
Por iso non me bato en duelos:
a morte vén garantida de fábrica,
certificada pola Norma ISO 9001,
estando penado o seu incumprimento
coa suspensión perenne da vida.

Pola contra, desdirecciónome
no ascenso esgrevio
tanto canto a estratexia me permite
mercé a labores de distracción
que me libren, no posible, de tropezos,
facadas, de ollares torvos ou silveiras:
de trampas sedentas, fundas.

Záfome.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Ao fio duma fotografia


Pré-tangas-me no cais
contra a tela do rio
a reflectir as luzes da cidade
e acordar uma memória
feliz de adolescência remota:
acampada no Bois de Boulogne,
ilegal
(à Rita roubaram-lhe do estendal as calzinhas),
almoços no restaurante universitário
italianos malucos
maluqueavam-nos,
baguettes e croissants...
um café numa esplanada e nunca mais,
também o que não se conta:
no fim sobraram os francos
de estar tudo tão caríssimo.

Naquele então a raia era nítida
e saltamo-la.

Periscopiei-me

Hoje anoiteci girafa,
em toda altura de mim
vaidades,
e saí a passear as ideias soltas
e as solidões
em liberdade vigiada,
vista sempre em frente
e atrás babas de caracol.

Reparem: ainda tenho pulso
e as mesas da esplanada são brancas,
as cadeiras cómodas,
a leitura plácida.
Não há ninguém comigo no paraíso.


(Isto está uma paz assustadora.)

Poetando-lhes (bonitamente) os arrotos (I)

Andam os cachorros das espanhas
com impunidade de estrangeiros
pelas esplanadas tugas
―verão foi sempre verões―
a devorar congéneres quentes
prévio arrefecimento dos ditos
sobre a mesa assim tipo metálica,
ocupadas as bocas em vozes
de que abrolha incontida
a euforia hormonal em flor.
Acompanham-se dum líquido
(de aspecto nada sedicioso, sedífero, sedutor?,
se bem se pensa, não que importe),
a modo de mostarda,
cuja fórmula prospera
com zelo em caixa-forte
junto a um rato criogenizado
e várias estrelas ao calhas,
com que insuflam o estômago
da imatéria aérea exacta
para assassinar a cozinha mediterránica
a graves notas ex-abruptas,
sem desculpe-mes.

Aqui ao menos ninguém fala de bola.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Pedido para me manteres na insabedoria

Inqualificável
é adjectivo útil como
recurso estilístico culto
na indefinição das minhas ignorâncias.

Ando para aqui com uma sede
de redondos vocábulos, exactos,
que me mostrem o endereço
certo do infinito.

Vai-me ensinando, então, em meias doses,
mas nunca me sirvas todos os mistérios
que se ocultam entre
o sujeito
e
o predicado.

Se um dia aprendo tudo
morro logo na página seguinte.

Do outro lado do espelho a vida

Sol e lua
abraçam-se
muito pouco cientificamente
sobre o céu azul pálido
que antecede o lusco-fusco.

Há quem diga que as metáforas
não condizem com a realidade.
Eu digo não:
é a realidade que desdiz
da essência nutriente da vida:
a palavra cria imatérias que existem,
nos existem.

Última escena sobre a vía morta

Instaláronme controis de acceso
ás plataformas nas estacións
e xa as despedidas se ofrecen
con sabor a chicle sen azucre
anticipadas na barreira xiratoria.
Nada de bicos imposibles en ansia
sobre o vidro embazado do vagón,
nin panos brancos a bater as puntas
na distancia coma pombas que desmaian...

(Apenas un atraso imprevisto na partida
podería permitir
que a aperta se prolongase
na pel acolchada do abrigo
filtrándose por todos os límites
da seguridade castrante.)

Pártesme en soidade
e en desolación pártome
contra un taboleiro de luces intermitentes
e as megafonías barbaramente babélicas
que anuncian billetes de balde a ningures
para todos

só de ida.

sábado, 19 de junho de 2010

Onde não se morre de todo...

As minhas mãos,
a segurarem as páginas em labaredas
contra a vontade deste vento zombeteiro,
tão desconfortável,
são duas barrigas de lagartos
mortos de três dias,
nesse exacto rigor flácido e cinzento
quase branco.

Não se inventaram cremes, acho,
que atalhem a putrefacção interna
da carne. Porém, a epiderme ainda
evita que espalhe no ambiente
folcloricamente festivo da tarde
o fedor do cadáver que me nasce.
Além do mais, ninguém ouve,
por obra e graça dum obnubilaçãozinha qualquer,
sobre a relva fosforescente
do campo que o televisor confiado exibe
os meus cem mil pardais em agonia
a baterem as asas, a soterrarem os olhos
com a transparência delicada
de quem sabe evitar incómodos
ao público, em geral.

As minhas mãos,
ao fecharem o livro incendiado
contra o desejo líquido dos humores,
tão impertinentes,
cobram uma tonalidade verde azulada
e contorcem-se para redigirem sem tacha
este estado de desânimo
numa esplanada onde não se morre de todo
porque sim.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Tudo se transforma

Na alva em que tu virou ele
e me descobri a falar contigo.
Para Laura Ferreira dos Santos

Não tem medida a dor
nem tenho eu espaço bastante
para a guardar
nas gavetas secretas do poema,
antes me transborda das margens
do caderno
em que rascunho,
ilegível mente,
a rosada insistência do amanhecer
que me assalta
após a noite,
mais uma,
despida
do abraço em que fiquei presa
querendo sem querer;
despojada
de metas a longo prazo:
o mundo é aqui e agora,
nesta mágoa única e minha,
nestas lágrimas únicas e minhas,
que a sós para ele,
em memória,
se transformam.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Sin regreso

Se me ha muerto la infancia en
la curva de las pájaras,
allí, en lo más alto,
donde nunca faltan
con sus capirotes ágiles
esquivando el rumor repentino
del motor en calma.

Se me ha muerto el ámbar
que gotea de la piel agrietada en el tiesto,
lento, lento, lento ya para nada;
y los tomillos, el espliego, los enebros,
las sabinas, el cantueso y sus latines,
se me han ahogado
en un pozo de agua que fue fresca.

Se me han muerto las liebres en sus camas,
los conejos en las morenas, las perdices en las lomas,
y entre trigales,
antes del incendio de rastrojos,
las codornices que aletean,
los topillos subterráneos,
se me han muerto todos,
los arrendajos y su parentela de urracas,
grajos, grajillas y cornejas,
entre las lilas el carbonero leve y el jilguero
en el huerto de almendros y manzanos.

Se me han muerto
uno a uno
todos los nombres de los pueblos:
mi lengua más brava.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Segredos partilhados

Alimento-me de chocolates e poemas:
é assim que me nascem as palavras.

Sou triste.

Aprendi, contudo, que a felicidade é
um balão colorido sempre a fugir
que só com os dentes se agarra
por uns instantes preciosos...
mas ao trinca-lo, ansiosa a gente por retê-lo,
explode
no rosto
e dói.

A descer da Lapa o Porto acolhe-me
com o aroma doce e pesado
das tílias que me devolve à infância.
Aspiro-o fundo, devagar, e exalo-o.

Avanço
sem espreitar nos espelhos retrovisores
as sombras.

domingo, 13 de junho de 2010

Arnês no ar

Correria agora pelas margens
de mim
para que sobrasse, talvez, uma esteira de gritos
sem eco...
Mas está tudo em volta minha
sem edifícios
e não tem pele a ausência
de ti
em que amarre a linha de vida
que me suspende em quedas livres,
absolutamente livres
sobre o futuro.

As convulsões que me sacudem
no turbilhão do infinito
em que me destranco e voo
quebram-me o fôlego
e a espinha:
não me matam,
antes morrem-me
aos pedaços.

sábado, 12 de junho de 2010

Declaração de intenções soturnas

Hoje,
mais um hoje,
apetecia-me
mesmo e mesmo
ficar num knock-out eterno...

Mas não aprendi ainda a coragem covarde da desistência radical.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Autorretrato impaciente à machada

Ninguém pense que me conhece
porque venho aqui a vomitar cuspe
ou bílis. Tenho vida atrás que chegue
e alguma, menos, à frente,
em que não afundo tanto que me afirme.

Tenho,
para os pormenores a cinzel,
o gesto seco e ausente,
os dedos fracturados de tanto desavir comigo,
os pés a dez centímetros do chão
e muito perto da cabeça:
nada que provoque vertigens imprevistas
nem sangue fora do papel.

Em estratégia, ai!, sou de derrota certa:
antes me vence a retirada
do que o desprazer duma baioneta
arrancada a pingar
o confete vociferante das vitórias.

Do resto também nada se aproveita...
nem para esterco.

À mostra

Desenvolver
―o que quer que for―
conforta?

Agir metodicamente é imprescindível
para levantar as camadas com sigilo:
escolhe-se um campo assoalhado,
esfola-se o inoxidável com lâmina de aço,
com vagar retira-se o adiposo panículo que amortece
e abre-se em lascas
―até que enfim desvendado!―
o mistério do cerne
pulsante,
sanguíneo,
nervudo,
antes de tanger com agulha sensitiva
no osso a melodia da fragilidade.

Ora bem... Em geral,
os espectadores carecem de coragem,
―fora da devassa clínica ou morbosa―
para contemplarem
a exposição pelada
duma ausência no desfalecimento
e o olhar vidrado dos voyeurs
antes morre pela penumbra vulnerável dos jardins
em noites aluadas
sobre epidermes pálidas.

De aí a solidão da carne sob a intempérie!

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Invólucro

Nesta casa non hai fiestras:
tapieinas con ladrillos
de revolta e rabia
para que non me fuxa a luz
e as tebras non entren
a tripar nos pétalos de estrela
que agonizan polo chan da sala.

Non hai portas nesta casa:
clausureinas con trancas
de madeira nobre e rexa
para que non entren monstros
a roldar nas pantasmas
asustadizas
que me acompañan ao almorzo.

Ceguei a cheminea con cinzas pesadas
para que a calor non fuxa do lar
nin escorra a néboa ou o orballo
a tintinar pola feluxe das paredes
a sua lentura amarga.

Non hai neste corpo ouvidos
nin ollos hai que me vallan,
tampouco labios que escachen:
só estómago túzaro
e o choqueleo trópego
dos postigos
que o alento sacode
coma latexo inconstante
a entrecortar os laios
e o sono... para nada.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Só porque si

Talvez o merlo cante porque non sabe
recibir doutro xeito a madrugada
tal como eu, ollos abertos
e corazón fechado,
empuño o rotulador e queimo pontes
que non me arden
nos trazos vermellos con que avanzo
polas páxinas coma se nada e todo
ou todo e nada
coma que
coma cantando sen gana
como o día rompe sen permiso da escuridade
así o mundo no seu sitio coma sempre
e nunca xa o mundo coma antes
como o merlo, eu, sen motivo á alba.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

E ainda dizem que o surpreendeu a morte...

Não é aos mortos que surpreende a morte
mas aos vivos que ficam
na surpresa presos à impresença
desprovida,
ao silêncio dos espaços em branco,
ao intacto dos corpos incorruptos em duas dimensões,
aos cheiros que persistem na derradeira camisa
ou no livro marcado pela página cento e trinta e um.

Não é aos mortos que a morte arrasta
mas aos vivos que reptam ao seu encalço,
extraviados os gêpêesses,
pela noite fora,
tacteando as margens dos precipícios sem eco,
com bolhas gritantes por dentro dos sapatos
e o gesto de espanto ferrado no rosto
ao ganharem o muro vazio do horizonte.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

matéria completa

a madeira é a matéria
de
árvore morta
matada
que cresceu
para ser
sombra
alimento
cama
dócil
e minguou
para ser
cama
sombra
alimento
hirto
morna textura
armação estável dos desequilíbrios
nas rotinas que sobrevivem aos nomes

terça-feira, 1 de junho de 2010

Noticiários

Está o muro das lamentações
ardendo
e eu que não posso ouvir as notícias
sem te apalpar com os dedos
as indignações
no lugar de preferência
das listagens
alfabeticamente ordenadas
afogo a angústia
num copo de água
(não há jôtabequinze que me conforte)
no instante em que o mundo começava.

Quebro e recomponho
para quebrar logo e assim...
está tudo em volta minha
de sorrisos partidos.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O céu de Sequeira

Em Sequeira, a 30 de Maio de 2010
Ao Ademar Santos

Ofereço-te o céu de Sequeira que verias
e nenhuma flor cortada, mas três beijos
sobre a pedra escaldante
como a tua memória aqui:

Um de mar, que é da Rosa.
Um de ar, que é da Ana.
Mais o meu, de terra e raiva.
Todos os três, de palavras.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Presente

Está um silêncio feroz no computador
que me tolhe.

Mas um dia destes,
eu digo-te,
vamos renascer juntos nas pétalas e espinhos
de rosas não cortadas.

Porque

continua a tua língua viva em mim
e o teu riso:
nos lábios,
nos dedos,
nos dias
e noites,
nos segundos todos,
na pele da memória
ocupando-me.

sábado, 15 de maio de 2010

Cirurxía textual

Inicio a intervención,
desprevinda,
a corazón, a corazón
fendido,
trémulo o pulso,
e de súpeto desángrome nun cichote
de tinta vermella
que vira escura, mesta, case negra,
a cada incisión sangue meu,
podre,
e vómito:
o pasado do que tanto renego
asaltándome
asaltándome
asaltándome.
Estiño a ferida con cuspe
do que engulo
e sigo
abrindo e suturando
abrindo e suturando
abrindo e suturando
as vísceras que me foxen entre os dedos,
entre as palabras doutros,
cirurxiá a quen o cadáver lle estoupa
contra a boca sen máscara,
infectándoa,
septicemia latente que grita,
que estrulla
terra contra os dentes,
a terra falsa con que se enterran os mortos vivos
no esquecemento imposible.

sábado, 8 de maio de 2010

Repenicar

O poema não tem mais que o som do seu sentido
"Arte poética". A criança em ruínas. José Luís Peixoto


Evoca-me o som da chuva,
o tintinar dos sinos da aldeia,
os passos rápidos numa rua sombria
e silenciosa,
a areia, a areia, a areia...
que outra mão deixa cair na minha como um presente,
o sal! que pica na língua e enche de água a boca:
é a criança que me habita
e constrói sonhos
para mim
quando já só sou capaz de edificar ruínas.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Tormento

está o potro aprontado

deito-me nele
de braços e pernas
vontade e memória
entregues
aos quatro pontos-sentidos cardinais
da irracionalidade
baralhados

fui
vim.......................................estou
sou

no desmembramento constante


nem de nem para
nem onde nem quem








nada ou ninguém

ninguém e nada

Voto

Que o teu dia seja
MELHOR
infinitamente
do que a noite minha
ou
ai...!

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Adiando o instante

Médrame arredor o mar
con que alago a distancia
e a aurora de mañá cedo cégame
pola fiestra do oriente.
É tanta a luz
coma as tebras
que me viran o azul branco,
negro o branco,
no día en que escancio
mais unhas horas
de prórroga.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Visitante nocturno

Xordes sempre pola noite
dentro,
coa composición química dos espectros,
envolto nun pano de verdor pálido,
invertebrado,
e o tintinar dos ferros que te prenden.

Chegas
e unha corpulencia exquisita de silencios
invade o cuarto
construíndo metáforas á medida
do desexo e a plenitude.

Marchas
e un ronsel triste de rosas e bicos
perpetúase no chan
destruíndo a fantasía desmedida
de ansias e impotencias.

Foxes sempre pola madrugada
fóra,
coa fórmula física dun arreguizo
camuflado nun verniz opaco,
acéfalo,
e os estralos das tenaces que te ceiban.

domingo, 25 de abril de 2010

Indicios (I)

Semeábasme a pel
de estreliñas moribundas
coa ponta tépeda da lingua
mentres eu fechaba os ollos
para non estorbar o brillo
do seu estertor sutil.

Nos confíns glaciais do cuarto, axexaban as tebras
que o meu nome impronunciado delataba.

Distancia

É hora de fechar a porta,
de estrullar os oxalás
no morteiro da razón.

Médranme asas de lousa
e grillóns no desexo.

É hora de escavar un foxo
no centro do estómago
e vomitar silencios.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

A mentira

Facer como que non
sabendo que é si.

Seguir
de ollos moucos,
de ouvidos bafos,
de boca entalada,
e pel pitoña,
como se nada,
sabendo que todo
xa non é,
ou mellor,
ou máis ben:
que nunca foi.

Negar tres veces é
afirmar no baleiro,
crer na imaxe que me devolven
os espellos de auga.
.agua ed sollepse so

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Uma visita inesperada

Vidros partidos foi o que vingou
do almoço improvisado:
nem café, nem croquetes, nem ossos de pernil de peru,
vidros, as minhas mãos tontas.
O dito e o não dito,
em pedaços pequenos,
a confiança que tão grande foi
res-ta-be-le-ci-da,
o copinho minúsculo no chão,
talhado não,
quebrado, partido, roto...
como nos-outros,
tão velhos desiludidos e ainda
querendo viver tudo e tanto,
adolescentes sempre,
ou eternos imaturos
aos olhos deles.

Razóns

Na nube escura que só permite no oriente
un resplandor rosado,
no morado das glicinias que penden coma uvas
de devorar cos ollos,
no canto pertinaz dos melros que debuxa
nos ouvidos clarinetes de colores
na suavidade das teclas con que che dou
novas de min tan vellas,
na temperatura limpa que desde a ventá me delicia
co sabor esencial de cada latexo.

Felicidades coma suspiros
con que rebento o pesadelo da noite.

sábado, 10 de abril de 2010

Vencida

Quan em mori, caveu un clot profund
i enterreu-m'hi dempeus, cara a migdia,
que el sol, quand surt, me encengui el fons dels ulls.
Així la gent que em vegi exclamarà:
―Mireu, um mort amb la mirada viva.
Miquel Marti i Pol
fragmento de "Em declaro vençut",
La pell del violí



Irrompín cun grito desde a marxe esquerda
da desesperanza.

O sol intenso
o frío,
o rexo
tapiz de herba,
de herbas bravas...

O día non prometía nada.

terça-feira, 30 de março de 2010

Fracasso

Passei a noite com a dignidade na mão
a colar os pedaços
em que se partiu o fio delgado que nos unia.

Foi os dedos que colei.

domingo, 28 de março de 2010

Química

Agacha ao pé dela
para procurar nun vinilo ―dixo― unha lembranza
que lhe quere mostrar.

Entón coma quen non quere a cousa
querendo
agarímaa cunha man que se distrae
do dedillar polo andel da outra.

Gosto do cheiro do teu cabelo ―sentencia.

Manda truco, este fulano
―inspira ela, contrita toda―,
cativo do que non é meu en min,
prendeume agora a unha marca de xampú.

segunda-feira, 22 de março de 2010

No dia da véspera em que fui ao teu encontro...

Nada permitia prever que
no dia seguinte
um estremecimento
intimo e profundo
me fosse acordar
da letargia.

Nenhum sinal havia às tantas
nos poisos do café
menos nas estrelas
(sempre a fingirem de vivas)
nem no arroz de sarrabulho.
Parecia, ao longe, um sábado qualquer.

Talvez algum deus aborrecido forçou o destino
numa estudada combinação de factores
desviando o curso da derrota
pelos meandros
duma lição de história a modo de preliminares
até o altar da consagração.

sexta-feira, 19 de março de 2010

A pretexto

Esqueci o guarda-chuva
assim como abandonei
nos teus lençóis
o rasto essencial da pele

inconscientemente
subconscientemente

no instante
único
a que nunca regressarei.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Mãos

Se digo mãos, digo só as tuas,
substantivas, dadas,
em mim que já me perdi nelas
procurando-me;

digo
a juventude
que em falas antiquíssimas
me sussurra em todos
os cantos meus
(áreas-sons)
moribundos;

digo
as que vi pousadas na mesa da sala,
antecipadas
em escritos,
invasões,
colonizações,
acordando-me,

digo
as que ouvi reptando-me,
guias de trevas penumbras clarões fulgores
abrasando-me apaziguando-me
tuas.

Se digo mãos,
é cativeiro dos meus sentidos em ti
que digo: o teu nome aqui dentro.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Espaço reservado (segunda parte)

Pintar versos na rua seria bom, mas depois, quem os leria?

Lê-los-iam os tristes, meu,
que caminham de olhar no chão
extirpando o próprio desconsolo
dos espelhos;
os pequenos,
cuja ambição não alcança os botões dos semáforos;
os cansados, que reptam devagar
tentando não incomodar as pressas
dos que correm por chegar antes a nenhures.
Lê-los-iam os que moram na palavra,
pé ante pé,
esquecendo ontens,
ignorando amanhãs.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Espaço reservado

Admira-me que tenha de haver espaços reservados para pessoas frágeis,
que as gentes não se saúdem quando se encontram na porta do elevador,
[a subir e descer pelas escadas

ou visto de aqui, aldeia aldeíssima,
esses urbanitas que para cá vêem por causa do menor preço da vivenda,
[sem nada quererem saber de ervas, dos bichos que esmagam,

só alcatrão e muros altos, ignoram o bom dia-boa tarde no caminho,
como dizendo
—E esta velha agora a falar sozinha?
—Será que pensa que me conhece?

Sozinhos todos a falarmos por telemóveis e internetes
com desconhecidos, que desconectamos à vontade,
que matamos quando nos cansamos deles,
como tamagótchis.

Alguém me disse há pouco:

Depois da poesia é tudo uma merda.

Vamos é pintar versos na rua!

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Escuridão

Resgatei do lixo
um boneco de trapo
para nos abraçarmos quando
se apagarem as luzes.
As luzes todas.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Diagnóstico pouco romântico

Estas dores, diz o medico com gesto grave,
são a maneira que
o corpo tem
de exprimir uma ausência.

Mas...
olha, querido,
que não me parece que sejam
lugar escolhido para morada
do desamor
as canelas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Ao día seguinte

Ao meu lado
contemplei os restos do vendaval:
uma barra de labios rota,
dúas cartas do banco sen abrir,
un lapis de punta roma,
o móbil apagado,
a carteira aberta,
unha dor de cabeza en propiedade
insufrible
e unha pedra no estómago.

Fóra, un can que me ladraba.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Apesar

Chá como as tuas
palavras é áspero,
cáustico sempre
inevitavelmente, acho,
e, todavia, bebo-o
como se fosse
maracujá mascarado
de distâncias
medidas.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Febreiro

Como se febreiro fose o peso dun século
apenas levanto xa os pés no pouco que camiño,
mastigo lento e bebo a grolos
este inverno que parece o derradeiro.
E quen sabe?
Talvez sexa.
Parecer, xa dixen, parece mesmo.
Xa non espero que chegue a primavera,
non vaia ser que nin repare en min,
tan despistada sempre
ela.

Como se febreiro fose o peso frío dunha campa,
que nin alento me presta.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Exânime

O meu corpo é
um roupão molhado,
encharcado,
pesado e lento,
pálido e frio,
a que nada,
nem a música das palavras
com que tentas aquece-lo,
eleva.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Como se viesse para ficar

O cansaço é uma visita inoportuna
a qualquer hora
com quem ninguém quer conversa
nem partilhar a cama ou a mesa da sala.
Sempre, quando chega, de olhos vazados,
parece que vem para ficar,
tanta pouca pressa manifesta
no desprezo às palavras e nos gestos,
carentes de despedidas.

No outro dia, de dia, entrou casa adentro,
acomodou-se-me no peito,
desacomodando-me,
e abriu a boca,
gulosa de sangue,
as gengivas descarnadas,
num sorriso cínico,
cítrico.

Logo à noite, uma noite,
instalou-se-me no ventre,
expulsando-me de mim,
coalho de sangue,
para me devorar placidamente
às escuras e em silêncio.

O cansaço é uma visita nada grata
que chega de dia ao corpo
com a bagagem dos olhos vazados,
das gengivas descarnadas,
da nenhuma pressa à noite,
como se viesse
para ficar até ao fim do sempre
da gente.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Na quinta do era

Era de tarde em Aveleda
e a tarde dera trégua à chuva


Tiraste da algibeira as chaves
e foste-me abrindo as portas ao fundo de ti,
ao que és,
ao que foras.
E eram as lâmpadas queimadas,
e eram as salas vazias,
livros abandonados,
móveis ausentes,
o teu quarto, intacto, tal como era,
as celas que já não eram
ou o aqui que era a adega,
e a capela, ali, que era onde,
as cortes,
o lenheiro,
as relíquias e relicários
do que houve e do que não havendo há
num rasto de nostalgias caladas,
religiosamente descritas:
aqui era, aqui era, aqui era...

No quintal ainda o plátano,
colossal e nu,
denunciava-te no que és:
soma de tanto era.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Num instante

Nunca me senti maior do que nesse instante,
contemplando-te desde a pequenez pasmada
do meu corpo.

Nunca ninguém me fizera grande assim,
enorme: bastou que me oferecesses um poema
que continha o universo.

Fui a imensidade durante um segundo imenso.

Depois veio a vertigem: pernas a tremer,
cabeça às voltas, olhar desmaiado...
Caí a terra.

Num instante.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Filme

Bem podíamos, é verdade,
acudir por separado ao cinema,
sentar juntos ao fundo da plateia,
nas poltronas pior iluminadas,
prendermos a vista no ecrã,
de olhada impenetrável,
e atendermos só ao palpitar,
ao ritmo do pulso galopante,
ao calor dos corpos e aos odores,
aos silêncios ponteados de suspiros
arfados, ansiosos. Ah...
Podíamos mesmo até
beijar-nos aproveitando
um bombardeio qualquer,
uma perseguição ou outra
ou a barafunda duma família latina
em volta da mesa do jantar
disputando uma herança.

Podíamos tanta pouca coisa!

Mas afinal sempre vem o fim do filme,
rolam os créditos,
prendem-se as luzes,
abrem-se as portas
e lá fora está muito frio
para a falta de cantos escuros que nos permitam
abrir as narinas e aspirar
com força
os odores que esvaecem.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Nem nunca

Lavo a boca compulsivamente
para apagar o sabor do rebuçado
que acabei de tomar, iludindo-me,
a pensar que precisava açúcar,
quando o que precisava,
o que precisava mesmo
era ter na boca o sabor dum beijo teu;
como quando fodo a pensar que é foder o que quero
e no fundo,
por dentro e por fora do fundo,
o que queria mesmo era um abraço,
o abraço teu.

E tu nem onde nem nunca nada...!
Eu aqui e sempre,
sabão na pele,
mentol na língua.

Os ollos del

De entre todas as belezas tristes
pódeme a da humidade luminosa,
que desde o fundo do retrato escuro
roubado ao lusco-fusco clandestino
da delicadeza
me contempla expectante,
desafiándome a ondas de tenruras imposibles
sobre a pel novísima das cicatrices.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Antologia perversa

Se eu desse em ler agora (e por sempre) todos os poemas que me deste
não mais saía de mim, não mais da palavra me afastava,
nem olhava mais, nunca mais, aos olhos doutros,
nem aos meus, os próprios, só luz do desencanto.
Afundava no feitiço,
na violência mansa
da gramática assaltada,
na cruel intransitividade dos verbos
que há tanto perderam os objectos,
directos ou indirectos,
em que prolongavam carícias.
Mergulhava no ensalmo das letras,
subtilmente entrelaçadas, mágicas,
e afogava nelas, nelas
abafava o grito, o último, o mais calado.

Depois, quando o depois até que enfim chegasse,
na viravolta da eternidade,
mastigadas as metáforas,
o silêncio cobrir-me-ia
de pétalas a boca
como mordaça.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Arqueoloxía profunda

Pensei que non se desaprendía,
que era como andar en bicicleta,
que as mans habían de recoñecer
o camiño antigo sen guías nin mapas.
Era máis un escavar minucioso,
delicado,
vertical,
para desenterrar
falanxes sen o mínimo alento
e soñalas vivas.

Esquecérame que xa me esqueceu
soñar-sentir
e os dedos entaláronse,
na ansia do pracer
derrotados.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Hixiene íntima

Cada noite a altas horas
extirpo con mans asépticas o corazón,
límolle as bostelas,
retírolle os coallos
e póusoo suavemente sobre a herba,
á chuvia
e ao vento.
Que xa eles se ocupan de rematar o labor por min,
de lavalo e lustralo, respectivamente,
mentres durmo sosegada.

Logo de mañá cedo,
aínda húmido e pesado,
devólvoo ao sítio
e cósoo con sutura estéril.

A limpeza prolonga a vida útil da maquinaria.
Disque.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O canto do pisco (em dó menor)

No lugar de paz, calma e sorrisos

Pousas o corpo rechonchudo na rama
eroticamente despida do bordo
—que já não é japonês nada—
e cantas durante uns segundos
prendendo-me no teu feitiço,
o olhar profundo,
macio, pequenito, ligeiro
(eu sei que és ligeiro: já tive um nas mãos,
que resgatei palpitante no horrível susto nosso,
seu e meu,
da boca bondosa duma minha cadela cor-do-sol-em-alto).

Sacudo as pálpebras ao de leve levíssimo
e ascendes, saltitas
duma rama a outra e da outra a nenhuma.
Não me fujas assim!
Tivesse eu caçadeira e eras ave de morte morrida, morta,
estrondo e abalar da terra! —ameacei peteira peta-pouco.
Tenho é só uma câmara de ar manso
de que desconfias como se te fosse roubar o canto
num disparo. E fazes bem.
Fazes-me bem.

Fascina-me, então, nessa tua melodia, que eu gosto,
nem que nunca te alcance,
intocáveis, se tem de ser, seja,
tu na tua rama
e eu na cozinha
a te oferecer migalhas
por um solo de pisco em dó menor,
em dó.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Tempo de regresso

Chegou o tempo de sair
a navegar pelos caminhos,
humedecer a pele,
hidratar os olhos,
molhar os cabelos.

Está na hora de eu ser
rio também,
sereno ou agitado,
de abranger as margens
do universo
de mãos liquescentes;
de alcançar o mar
com os pés
e a nascente, de testa a fluir
a montante.

É boa altura já para ascender
pelos meandros e as auroras
de onde vim.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Bágoas

Declaração de princípios (e finais):

O título, para o valter hugo mãe,
ele sabe porquê e o mundo, não tarda, saberá.
O texto, para o Inominável,
também ele sabe o porquê e o quanto!,
o mundo é que não vai saber assim tão cedo.


Sumi
desprocurada
na indiferença
de ti, que nem me vias,
formiguinha no alcatrão.

Fizeste-me nada
nada me fazendo,
nada que não era
aquilo que sou
ou
água e sal,
só.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Intragédias

No mínimo deu para isto
a pena minha.
E já estou menos triste.
Claro que eu só distingo
realidade
de
fantasia
na hora do trabalho
-não me pagam por imaginar nada nem me alimento de sonhos-,
mas no resto do caminho,
anda tudo à mistura:
rebotalho de livros, filmes, vidas.

Também não é tragédia,
que é palavra muito maiúscula,
e não tenho pensado morrer ainda.

E não, não é sorte, nem azar, nem justiça divina.
Ou será?