Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Domingo de tarde, tarde

A tarde é só interrompida pelos cheiros
gasolínicos de motas d'água, barulhos
de impressionar raparigas em riquezas
só de brilhos.

E eu aqui a te reclamar atenções
com a única arma de meu corpo nu
apagado:
as palavras mudas.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Com licença

Para o O. M.

Documentava-te agora mesmo
com os papeis meus autênticos,
fosse assim fácil fazer igual dizer:
data de nascimento e nacionalidade,
que me sobram tanto
nestes dias de lusco-fusco e outonos.
E era tão bom que fosses tu eu,
só ante as autoridades competentes
e para que conste:
bilhete de identidade,
permissão de residência,
carta de conduzir e amar
nesta terra de tão altas fronteiras
em que naufrago, nada sendo.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Parte meteorológico

Este vento é do sul e acorda-me
com os sons de madrugada na N13
(barulho de camiões principalmente)
Não tarda em chover.

Nem amortecido se ouve o rebuliço dos pardais,
à procura de espaço e mais uma migalha de pão.
Também não tintinam os ferreirinhos nas bigornas frágiles
nem contemplam admirados o seu reflexo
sobre o vidro do meu gabinete,
a balançarem no cordel do mosquiteiro
como pêndulos da hora certa.

A melodia dos piscos nem se anuncia
ainda
nos seus olhos ausentes de enorme desconcerto escuro.

E as rolas,
com o cheiro a pólvora recente baixo ás as,
emudeceram.

Há para aí um melro a namorar entre as gardênias
(nem deve saber que já vem sendo outono),
mas sempre um gaio me adverte do perigo que sou eu.
Oi, ssst, silêncio!
Duas pegas discutem a propriedade dum ovo roubado
e meia dúzia de corvos em assembleia extraordinária
abrem um oco entre o nevoeiro.

Este vento vem do sul, com certeza:
não é a tua respiração no meu rosto
acarinhando-me.
De aqui a nada, chove-me.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Desvariações sobre o mesmo tema: Tu

Desescrevi-te as cartas e as histórias:
fui uma por uma apagando as letras,
os meu pouco tanto é muito do princípio
os tua tudo tanto é nada do final,
os nunca alguns de beijos
e os abraços sempre nenhuns.

Desenchi as ausências do vazio
em abundância que me resta;
de espaços brancos, as solidões e as noites;
de razão, os inermes sentimentos.

Nas promessas e nas juras desfalei-te,
desteci-te de sorrisos as olhadas,
missangas de lágrimas eu a toda página
tilintando na amanhecida cama
até a tinta secar e virar coalho o sangue.

Como asas de beija-flor
desdesenhei as mãos tuas esvoaçando
moribundas já,
me fugindo.