Tudo depois da poesia é uma merda.
Ademar Santos

sábado, 30 de janeiro de 2010

Filme

Bem podíamos, é verdade,
acudir por separado ao cinema,
sentar juntos ao fundo da plateia,
nas poltronas pior iluminadas,
prendermos a vista no ecrã,
de olhada impenetrável,
e atendermos só ao palpitar,
ao ritmo do pulso galopante,
ao calor dos corpos e aos odores,
aos silêncios ponteados de suspiros
arfados, ansiosos. Ah...
Podíamos mesmo até
beijar-nos aproveitando
um bombardeio qualquer,
uma perseguição ou outra
ou a barafunda duma família latina
em volta da mesa do jantar
disputando uma herança.

Podíamos tanta pouca coisa!

Mas afinal sempre vem o fim do filme,
rolam os créditos,
prendem-se as luzes,
abrem-se as portas
e lá fora está muito frio
para a falta de cantos escuros que nos permitam
abrir as narinas e aspirar
com força
os odores que esvaecem.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Nem nunca

Lavo a boca compulsivamente
para apagar o sabor do rebuçado
que acabei de tomar, iludindo-me,
a pensar que precisava açúcar,
quando o que precisava,
o que precisava mesmo
era ter na boca o sabor dum beijo teu;
como quando fodo a pensar que é foder o que quero
e no fundo,
por dentro e por fora do fundo,
o que queria mesmo era um abraço,
o abraço teu.

E tu nem onde nem nunca nada...!
Eu aqui e sempre,
sabão na pele,
mentol na língua.

Os ollos del

De entre todas as belezas tristes
pódeme a da humidade luminosa,
que desde o fundo do retrato escuro
roubado ao lusco-fusco clandestino
da delicadeza
me contempla expectante,
desafiándome a ondas de tenruras imposibles
sobre a pel novísima das cicatrices.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Antologia perversa

Se eu desse em ler agora (e por sempre) todos os poemas que me deste
não mais saía de mim, não mais da palavra me afastava,
nem olhava mais, nunca mais, aos olhos doutros,
nem aos meus, os próprios, só luz do desencanto.
Afundava no feitiço,
na violência mansa
da gramática assaltada,
na cruel intransitividade dos verbos
que há tanto perderam os objectos,
directos ou indirectos,
em que prolongavam carícias.
Mergulhava no ensalmo das letras,
subtilmente entrelaçadas, mágicas,
e afogava nelas, nelas
abafava o grito, o último, o mais calado.

Depois, quando o depois até que enfim chegasse,
na viravolta da eternidade,
mastigadas as metáforas,
o silêncio cobrir-me-ia
de pétalas a boca
como mordaça.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Arqueoloxía profunda

Pensei que non se desaprendía,
que era como andar en bicicleta,
que as mans habían de recoñecer
o camiño antigo sen guías nin mapas.
Era máis un escavar minucioso,
delicado,
vertical,
para desenterrar
falanxes sen o mínimo alento
e soñalas vivas.

Esquecérame que xa me esqueceu
soñar-sentir
e os dedos entaláronse,
na ansia do pracer
derrotados.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Hixiene íntima

Cada noite a altas horas
extirpo con mans asépticas o corazón,
límolle as bostelas,
retírolle os coallos
e póusoo suavemente sobre a herba,
á chuvia
e ao vento.
Que xa eles se ocupan de rematar o labor por min,
de lavalo e lustralo, respectivamente,
mentres durmo sosegada.

Logo de mañá cedo,
aínda húmido e pesado,
devólvoo ao sítio
e cósoo con sutura estéril.

A limpeza prolonga a vida útil da maquinaria.
Disque.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O canto do pisco (em dó menor)

No lugar de paz, calma e sorrisos

Pousas o corpo rechonchudo na rama
eroticamente despida do bordo
—que já não é japonês nada—
e cantas durante uns segundos
prendendo-me no teu feitiço,
o olhar profundo,
macio, pequenito, ligeiro
(eu sei que és ligeiro: já tive um nas mãos,
que resgatei palpitante no horrível susto nosso,
seu e meu,
da boca bondosa duma minha cadela cor-do-sol-em-alto).

Sacudo as pálpebras ao de leve levíssimo
e ascendes, saltitas
duma rama a outra e da outra a nenhuma.
Não me fujas assim!
Tivesse eu caçadeira e eras ave de morte morrida, morta,
estrondo e abalar da terra! —ameacei peteira peta-pouco.
Tenho é só uma câmara de ar manso
de que desconfias como se te fosse roubar o canto
num disparo. E fazes bem.
Fazes-me bem.

Fascina-me, então, nessa tua melodia, que eu gosto,
nem que nunca te alcance,
intocáveis, se tem de ser, seja,
tu na tua rama
e eu na cozinha
a te oferecer migalhas
por um solo de pisco em dó menor,
em dó.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Tempo de regresso

Chegou o tempo de sair
a navegar pelos caminhos,
humedecer a pele,
hidratar os olhos,
molhar os cabelos.

Está na hora de eu ser
rio também,
sereno ou agitado,
de abranger as margens
do universo
de mãos liquescentes;
de alcançar o mar
com os pés
e a nascente, de testa a fluir
a montante.

É boa altura já para ascender
pelos meandros e as auroras
de onde vim.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Bágoas

Declaração de princípios (e finais):

O título, para o valter hugo mãe,
ele sabe porquê e o mundo, não tarda, saberá.
O texto, para o Inominável,
também ele sabe o porquê e o quanto!,
o mundo é que não vai saber assim tão cedo.


Sumi
desprocurada
na indiferença
de ti, que nem me vias,
formiguinha no alcatrão.

Fizeste-me nada
nada me fazendo,
nada que não era
aquilo que sou
ou
água e sal,
só.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Intragédias

No mínimo deu para isto
a pena minha.
E já estou menos triste.
Claro que eu só distingo
realidade
de
fantasia
na hora do trabalho
-não me pagam por imaginar nada nem me alimento de sonhos-,
mas no resto do caminho,
anda tudo à mistura:
rebotalho de livros, filmes, vidas.

Também não é tragédia,
que é palavra muito maiúscula,
e não tenho pensado morrer ainda.

E não, não é sorte, nem azar, nem justiça divina.
Ou será?